Fonte: Banco de Portugal e INE.
O endividamento externo foi, em larga medida, intermediado pelo sistema bancário português. Os bancos angariaram fundos (sobretudo de curto prazo) no mercado monetário do euro e converteram-nos em empréstimos (de longo prazo) ao setor privado, o que criou um importante desfasamento de maturidades nos respetivos balanços. O rácio entre empréstimos e depósitos do conjunto do sistema bancário aumentou de 89% em 1998 para 156% em 2007.
Uma política macroprudencial e uma política orçamental contracíclica teriam ajudado a conter os riscos associados à expansão da procura interna. Contudo, a política macroprudencial simplesmente não fazia parte do conjunto de ferramentas tradicional e a política orçamental maioritariamente pró-cíclica seguida agravou os desequilíbrios macroeconómicos. No período entre 1995 e 2007, o défice orçamental situou-se, em média, em 4,3% do PIB, tendo permanecido sempre acima do limiar de Maastricht de 3% do PIB.
Quando a crise financeira internacional eclodiu, o fraco crescimento do produto potencial e o crescente endividamento externo alimentaram as dúvidas dos investidores quanto à capacidade dos agentes económicos portugueses para pagar as suas dívidas. Entre 2009 e 2011, o financiamento externo aos bancos caiu cerca de 30 pontos percentuais do PIB. Em resultado, os bancos tiveram de recorrer ao Eurosistema, enquanto o volume da dívida soberana portuguesa colocada junto dos bancos domésticos aumentava.
No primeiro semestre de 2011, após dozes meses durante os quais as taxas de juro da dívida pública a 10 anos tinham praticamente duplicado para um valor ligeiramente acima de 9%, as dúvidas crescentes dos investidores quanto à sustentabilidade das finanças públicas e da dívida externa levaram à interrupção do acesso aos mercados internacionais de financiamento. Tornou-se inevitável o recurso à assistência financeira externa, ao abrigo de um programa negociado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional.
Esta não foi a primeira vez que Portugal teve de recorrer a assistência financeira oficial. Como muitos dos presentes decerto se recordarão, já tínhamos negociado programas de ajustamento com o FMI em 1977-1978 e em 1983.
Nessa altura, a causa primordial dos desequilíbrios acumulados foi essencialmente a mesma: um crescimento excessivo da procura interna em relação à capacidade produtiva da economia, o que conduziu a uma acumulação de dívida externa.
Contudo, dado que não fazíamos parte de uma união monetária e dispúnhamos de plena autonomia monetária nas décadas de 1970 e 1980, os sintomas da crise e as receitas em matéria de política elaboradas na altura revelam algumas diferenças importantes face ao episódio de crise mais recente.
Num contexto de soberania monetária, os desequilíbrios traduziram-se em depreciação cambial, erosão das reservas internacionais e taxas de inflação elevadas e crescentes.
Visto que a política monetária estava plenamente disponível a nível nacional, seguiu-se o caminho da repressão financeira. A receita de política consistiu em aumentos das taxas de juro, metas de crescimento para o crédito, controlos de capitais e desvalorização do escudo, a fim de conter a procura interna e restabelecer a competitividade das exportações.
Em resultado da estratégia de ajustamento, o valor real dos salários, das pensões e das poupanças diminuiu acentuadamente e foi transferida riqueza dos credores para os devedores. A ilusão monetária esbateu a perceção dos custos do ajustamento e da sua repartição fundamentalmente desequilibrada. Além disso, dado que as metas foram fixadas nas variáveis nominais e a competitividade foi restabelecida no curto prazo, os desequilíbrios estruturais do lado da oferta e a competitividade a longo prazo não foram adequadamente abordados. Por conseguinte, a competitividade do país permaneceu frágil e ancorada em salários baixos.
Na primeira década dos anos 2000, a participação numa união monetária facilitou uma acumulação de desequilíbrios mais prolongada e de maior dimensão. A estabilidade nominal, taxas de juro reduzidas e uma ampla disponibilização de crédito criaram a ilusão de que as restrições ao crédito tinham desaparecido e ocultaram perdas persistentes de competitividade durante mais de uma década.
Os sintomas da crise emergente já não incluíram uma pressão cambial persistente, a erosão das reservas ou uma inflação elevada e crescente, mas antes uma súbita relutância da parte dos investidores internacionais em financiar a economia portuguesa.
Sem o instrumento monetário, a ilusão monetária deixou de existir e a receita em matéria de política teve de ser diferente. Em resultado, a necessidade de desalavancagem e de reformas estruturais do lado da oferta tornou-se inevitável.
O programa de assistência financeira
A execução do programa de assistência económica e financeira, estabelecido em 2011, permitiu alcançar progressos assinaláveis:
- o défice orçamental diminuiu consideravelmente, o que criou as condições para a atual tendência descendente da dívida soberana;
- o setor privado iniciou um processo de desalavancagem;
- o setor bancário tornou-se mais robusto, com maior liquidez, maior solvabilidade e, no período mais recente, maior qualidade nos ativos.
Este sucesso teve por base três fatores fundamentais:
- em primeiro lugar, a apropriação política, a sensibilização socioeconómica e o diálogo social. Os decisores de política empenharam-se no cumprimento dos objetivos do programa e demonstraram um profundo conhecimento dos mecanismos de resposta virtuosa que deveriam ser ativados nos setores críticos. Por seu turno, o público compreendeu a urgência e a equidade do programa. Os compromissos políticos alcançados entre decisores de política e parceiros sociais foram essenciais para garantir uma apropriação alargada e coletiva do programa, o que resultou na sua execução eficaz e atempada.
- em segundo lugar, a resposta positiva, intensa e rápida do setor exportador, que cresceu cerca de 45%, em termos reais, entre 2008 e 2017. Este facto contribuiu para a correção do défice da balança corrente, para colocar a dívida externa numa trajetória descendente e para mitigar o impacto de uma procura interna mais baixa sobre o setor não transacionável. Esta resposta positiva do setor transacionável foi muito mais forte do que o previsto e não foi impulsionada exclusivamente pelo crescimento dos mercados externos, dado que se registaram importantes ganhos de quota de mercado durante este período.
- em terceiro lugar, a manutenção da confiança do público em geral no sistema financeiro, o que foi evidente na estabilidade dos depósitos agregados. Este facto permitiu que o financiamento da atividade económica prosseguisse sem grandes perturbações e evitou o recurso a controlos de capitais. Os receios e a fuga de depósitos registados noutras economias sujeitas a programas de assistência não foram observados no caso português. Não foi por acaso que tal aconteceu, visto que as autoridades encetaram esforços ativos e persistentes no sentido de preservar a confiança no sistema financeiro durante a implementação do programa.
Após o programa de assistência
O ajustamento macroeconómico iniciado pelo programa de assistência económica e financeira prosseguiu após a sua conclusão em 2014, com resultados encorajadores.
O PIB tem vindo a crescer a uma taxa média anual superior a 2%, refletindo o contínuo dinamismo do setor exportador e, mais recentemente, a recuperação do investimento privado. A consolidação orçamental prosseguiu, esperando-se um saldo orçamental em torno de -0,5% em 2018 e tendo-se iniciado uma tendência descendente da dívida pública. As balanças corrente e de capital continuaram a registar excedente e a limpeza dos balanços dos bancos intensificou-se, com os créditos non-performing a diminuir de um nível superior a €50 mil milhões em junho de 2016 para cerca de metade deste valor no final de 2018.
Embora se tenham realizado progressos inegáveis, não há margem para complacência. A história dos últimos 40 anos ensina-nos que o impacto inicial de um programa de assistência apenas será sustentável se existirem alterações estruturais que fomentem um crescimento potencial mais elevado.
No passado recente, o PIB per capita português manteve-se 30 a 40% abaixo da média da União Europeia, sem convergir com as economias mais ricas. Uma trajetória de crescimento duradoura e a convergência com os nossos parceiros europeus dependem da nossa capacidade para:
- promover uma afetação de recursos eficiente, nomeadamente através da maximização sustentada dos retornos do investimento, e uma reafetação no sentido do setor transacionável;
- alcançar níveis de produtividade mais elevados;
- gerar e manter níveis elevados de emprego;
- garantir que a combinação de capital e mão de obra gera um produto desejado e valorizado pelo mercado.
As políticas públicas têm um papel decisivo a desempenhar ao assegurar a prossecução contínua de reformas estruturais, que ajudarão nomeadamente a:
- aumentar a poupança agregada na economia;
- fortalecer a capitalização das empresas;
- providenciar, através dos mercados de capitais, instrumentos adequados ao financiamento da inovação e das exportações;
- promover a previsibilidade regulatória e fiscal e, em termos mais gerais, um quadro jurídico favorável aos negócios;
- separar a propriedade das empresas da sua gestão;
- reduzir a burocracia;
- melhorar o funcionamento do sistema judicial.
Por um lado, estas reformas são essenciais para a prossecução da correção dos desequilíbrios macroeconómicos que conduziram Portugal às crises do passado; por outro, elas são extremamente difíceis de implementar após a conclusão do programa de assistência.
Por que razão digo que as reformas estruturais são extremamente difíceis de implementar no contexto atual? Permitam-me sublinhar três desafios essenciais:
- Em primeiro lugar, no atual contexto de forte concorrência mundial, as empresas precisam de se adaptar permanentemente a uma concorrência em rápida mudança, o que exige uma correspondente adaptabilidade da parte dos serviços de apoio do Estado. Para tal, precisamos de um Estado que seja ágil, eficiente e simultaneamente capaz de salvaguardar a coesão social.
- Em segundo lugar, a transferência de recursos para o setor transacionável é essencial para evitar o regresso a desequilíbrios externos, mas pode comprometer a coesão social. De facto, o processo de adaptação à concorrência constitui sempre um desafio, existindo quem fique a perder. Estas situações devem ser apoiadas por redes de segurança social sustentáveis.
- Por último, não existindo um sentimento de urgência, pressão iminente dos mercados financeiros ou ilusão monetária, a apropriação das reformas pelos decisores de política e o consenso social tornam-se muito mais difíceis. Os custos de cada reforma tornam-se mais evidentes, devendo ser cuidadosamente equilibrados através da perceção dos benefícios compensatórios.
A natureza destes desafios transcende os modelos puramente económicos, englobando equilíbrios sociais. Para os ultrapassar, é, por conseguinte, necessário que exista um consenso social e politico, que apenas pode ser alcançado através de um debate aberto, alargado e informado.
Estou certo de que esta conferência contribuirá para este debate e de que, no final do dia, teremos recolhido bastantes ensinamentos úteis sobre os caminhos a percorrer para alcançar uma reforma eficaz, bem como sobre as estratégias a adotar a fim de eliminar os obstáculos que existam.
Muito obrigado pela vossa presença.