Permitam-me que inicie a minha intervenção saudando e agradecendo a presença do Senhor Ministro Adjunto, Dr. Pedro Siza Vieira; da Senhora Presidente da Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa da Assembleia da República, Dra. Teresa Leal Coelho; do Senhor Presidente da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, Prof. José Almaça; da Senhora Vice-Presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Dra. Filomena Oliveira; e dos presidentes e dos administradores das instituições financeiras aqui representadas. A todos os oradores deixo o meu muito obrigado por terem aceitado o convite do Banco de Portugal para se juntarem a nós nesta Conferência e a enriquecerem com as suas excelentes intervenções.
Gostaria ainda de deixar uma saudação especial para os participantes provenientes de bancos centrais, autoridades de supervisão comportamental ou governamentais de outros países, a saber: África do Sul, Alemanha, Bielorrússia, Brasil, Croácia, Espanha, Itália e Malta. Foi uma satisfação para nós acolher-vos. Espero que os trabalhos da nossa Conferência tenham correspondido às vossas expetativas, atrevendo-me a supor que isso terá acontecido, tão elevada foi a qualidade das intervenções.
Há dez anos o mundo mergulhou numa crise financeira de enormes proporções centrada nos Estados Unidos e na Europa. Foi reconhecidamente a maior crise financeira e económica desde 1929. Desta vez, a concertação internacional e a ação das autoridades públicas, designadamente dos bancos centrais, impediram que tivéssemos uma Grande Depressão como a dos anos 30 do século passado.
Mas não escapámos a uma Grande Recessão que teve tremendas consequências no plano económico e social, afetando gravemente a vida de muitos milhões de pessoas, e cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir.
Também há dez anos, o legislador português – através do Decreto-Lei n.º 1/2008, de 3 de janeiro – reconheceu que o quadro legal então existente era claramente insuficiente para uma adequada proteção dos interesses dos clientes bancários. Pretendia-se uma intervenção mais ativa da autoridade de supervisão, assumindo-se o objetivo de reforçar os respetivos poderes de fiscalização, decisão e sanção. Citando o preâmbulo do referido decreto-lei, instituía-se “a supervisão comportamental das instituições de crédito e das sociedades financeiras, no quadro das atribuições do Banco de Portugal, dando a este último as competências que lhe permitam desenvolver uma atuação efetiva para assegurar o cumprimento das normas de conduta, seja por procedimentos oficiosos, seja por via de reclamações dos clientes.”
Mas esta Conferência não teve por finalidade assinalar efemérides, por muito importantes que sejam.
Como todos pudémos constatar, o seu programa foi virado para os problemas do presente e do futuro próximo e dos novos desafios que colocam. O seu propósito fundamental foi refletir em conjunto sobre esses desafios, obter o contributo de protagonistas de outras experiências, no plano nacional e internacional, alguns deles com interesses e pontos de vista não necessariamente coincidentes, mas que – estou certo – comungam do objetivo central de contribuir para um mercado de produtos bancários de retalho que seja eficiente e inovador, mas também caracterizado por um elevado padrão de cumprimento dos direitos dos consumidores.
Se é verdade que o propósito desta Conferência não foi assinalar efemérides, seria muito injusto não prestar, nesta ocasião, o reconhecimento que é devido às equipas que, desde 2008, sob a liderança da Dra. Lúcia Leitão, asseguram no Banco de Portugal a missão da supervisão comportamental, que se autonomizou como departamento em 2011. Convém sublinhar que se trata de uma atribuição prosseguida exclusivamente no plano nacional, o que a torna ainda mais importante.
Como sabemos, a crise financeira abalou profundamente a confiança da sociedade em geral nas instituições bancárias. Nessa medida, foi atingida a essência do próprio negócio bancário. Restaurar a confiança no setor financeiro tornou-se, por isso, uma prioridade pública, assumida por atores políticos, reguladores, supervisores e, claro, pelas próprias instituições.
Uma grande parte dos problemas residiu, precisamente, na existência de graves falhas na conduta das instituições para com os seus clientes, fruto de sistemas de governação desadequados ou inoperantes e de uma cultura institucional profundamente errada.
De facto, a crise veio expor de forma ainda mais clara os riscos a que podem estar sujeitos os clientes bancários, em particular ao nível do crédito, e as consequências desses riscos para o sistema financeiro e a atividade económica em geral.
A aquisição de produtos desadequados ao perfil de risco e à capacidade financeira dos clientes, designadamente no que respeita ao crédito hipotecário, veio gerar um número significativo de situações de incumprimento, com um forte impacto negativo sobre a situação económica das famílias e sobre a qualidade dos ativos das instituições de crédito.
Os produtos bancários de retalho, tradicionalmente simples e de fácil entendimento, foram adquirindo uma complexidade crescente, incorporando características que aumentam o seu risco, tornam mais difícil a sua compreensão e avaliação, acentuando assim a assimetria de informação entre clientes e instituições. Num contexto de maior acesso ao crédito pelas famílias e de gestão da sua poupança através dos mercados bancários, a exposição a estes riscos e aos seus efeitos torna-se ainda mais perigosa.
A crise financeira e as suas consequências tornaram inevitável que estas questões assumissem uma grande importância na agenda de legisladores e supervisores. Intensificou-se a sua discussão a nível dos diversos fora internacionais, conduzindo à sistematização de recomendações quanto às melhores práticas a adotar na comercialização de produtos bancários e à preparação de iniciativas de regulação.
Essa regulação acrescida tem conduzido a que o âmbito de intervenção e o modo de atuação do supervisor dos mercados bancários de retalho esteja a passar por um processo de mudança, sendo frequente falar-se na transição para um novo paradigma de supervisão comportamental.
Neste novo paradigma, além das tradicionais preocupações relacionadas com a transparência da informação e os deveres de conduta que as instituições estão obrigadas a observar na relação com os clientes, a supervisão comportamental bancária passa a intervir em novas áreas.
O supervisor de conduta passa a atuar a montante do processo de contratação, através da avaliação da conformidade dos procedimentos internos adotados pelas instituições no âmbito da criação e distribuição de produtos e serviços bancários, devendo garantir a adequação desses produtos e serviços, e dos canais escolhidos para a sua distribuição, às caraterísticas, necessidades e objetivos dos respetivos públicos-alvo.
Foram criadas regras para que as instituições implementem mecanismos de aprovação e monitorização das políticas de remuneração dos seus trabalhadores envolvidos na elaboração, comercialização e concessão de crédito hipotecário e dos intermediários de crédito com os quais mantêm contrato de vinculação, tendo em vista prevenir a ocorrência de situações de conflitos de interesses.
Complementarmente, foram estabelecidos requisitos específicos de conhecimento e competências que os referidos trabalhadores devem possuir. Procura-se, desde modo, assegurar que, para além da informação que é prestada aos clientes bancários, os trabalhadores das instituições possuem um nível de conhecimento e competências que lhes permita prestar a assistência necessária aos clientes, com vista a que compreendam as caraterísticas e os riscos dos produtos que pretendem contratar.
Noutro plano, e atendendo ao impacto do seu papel no mercado do crédito, verificou-se também o alargamento do perímetro da supervisão aos intermediários de crédito, através da regulação e supervisão do exercício da sua atividade, por se reconhecer a sua importância para assegurar a contratação responsável de crédito.
Os intermediários de crédito passaram a estar enquadrados, a partir de 1 de janeiro de 2018, por requisitos de acesso e de exercício da atividade de intermediação de crédito, bem como por deveres de conduta e de prestação de informação obrigatória aos consumidores.
Paralelamente, a promoção da formação financeira passou a ser reconhecida como uma componente essencial da atuação da supervisão comportamental, tendo em vista garantir, a médio prazo, um público mais capacitado para tomar decisões financeiras. Não basta atuar do lado da oferta dos produtos. É preciso também agir do lado da procura.
Acompanhando esta evolução, a estratégia de supervisão comportamental adotada pelo Banco de Portugal assenta numa atuação em três vetores, que constituíram os temas dos painéis desta conferência:
- (i) O quadro normativo que regula as condições de comercialização dos produtos e serviços bancários de retalho;
- (ii) A exigência do cumprimento pelas instituições desse quadro normativo, através de uma atuação fiscalizadora, bem como da promoção de boas práticas; e
- (iii) A formação financeira dos clientes bancários.
Dez anos depois da crise financeira, forçoso é concluir que as condições do exercício da supervisão comportamental bancária estão profundamente alteradas.
O quadro regulatório foi bastante reforçado, obrigando a uma supervisão mais intrusiva e complexa. Há uma nova abordagem regulatória que confere aos supervisores maior margem de discricionariedade na sua atuação, o que tem como contraponto uma ainda maior responsabilidade e exigência. O escrutínio público é também mais intenso.
Contudo, mais importante ainda é o facto de tudo isto acontecer num contexto de profunda e acelerada transformação dos mercados bancários de retalho, por via da inovação tecnológica e da multiplicação de novos canais de comercialização.
A progressiva digitalização dos canais de comercialização dos produtos e serviços bancários de retalho tem dado origem a novos produtos e serviços, frequentemente através de novas entidades, e a novos modelos de negócio.
Uma crescente oferta de produtos e serviços financeiros online ou através de aplicações, a entrada de novos atores no mercado (tais como as Fintech e as empresas dos media sociais), bem como a utilização de novas tecnologias (Blockchain e Big Data), não só estão a alterar a relação que as empresas têm com os seus clientes como também colocam novos desafios aos supervisores.
Importa sublinhar que as novas ferramentas tecnológicas podem e devem ser aproveitadas também como um instrumento facilitador do cumprimento regulatório, diminuindo assim o seu custo para as instituições.
Na verdade, os supervisores têm de dotar-se de recursos humanos e tecnológicos para poderem realizar uma eficaz supervisão em ambiente digital. Só assim ficarão habilitados a promover a confiança na utilização dos canais digitais e a contribuir para uma oferta responsável por parte das instituições. É fundamental que a comercialização de produtos e serviços bancários inovadores, ou efetuada em moldes inovadores, não comprometa o cumprimento do quadro normativo e não desproteja o cliente bancário. A garantia da segurança é talvez o desafio maior, pelas dificuldades que coloca e por ser um fator decisivo para gerar confiança.
Não é difícil reconhecer que a atual fase de desenvolvimento do setor financeiro é extraordinariamente exigente para as instituições bancárias, tantos são os desafios a vencer, uns resultantes de um passado que todos queremos superar, outros decorrentes de um futuro que chega todos os dias. Saber se a medida atual de regulação é a correta ou se há exageros é uma discussão legítima e será sempre objeto de conclusões contraditórias.
Segundo uma frase célebre, os que pensam que o custo da educação é elevado devem pensar no preço da ignorância. Creio que a mesma lógica é extrapolável para a regulação: é verdade que tem custos, por vezes muito altos, mas a ausência dela ou a sua insuficiência pode ter um custo bem maior, como a crise de 2008 demonstrou, em primeiro lugar, para as próprias instituições bancárias.
É preferível pagar os custos necessários ao cumprimento de uma regulação mais exigente ou suportar custos – não menos elevados – com sanções, litígios, perda de reputação e negócio?
O maior argumento que o setor bancário pode dar a favor da diminuição da intensidade da regulação é ele próprio assumir, de forma inequívoca, percecionada pela clientela, um compromisso com uma cultura orientada para o cumprimento regulatório e a satisfação dos clientes.
A cultura de uma instituição radica no exemplo da gestão, na valorização e recompensa dos comportamentos adequados e na penalização dos incorretos. Coisas simples, mas na verdade, por vezes, difíceis de fazer.
A cultura institucional é um conceito imaterial, que não pode ser objeto de regulação. Tem de ser entendida como uma prioridade central e não como um adorno para impressionar. Tem que ser interiorizada e vista como algo natural. Deve ser prosseguida de forma sistemática e coerente. Tem de estar implícita no plano de negócios. E tem de ser estendida – sem exceção – a toda as áreas das instituições, pois todos conhecemos casos de comportamentos setoriais inadequados que conduziram, só por si, ao colapso. Deve ser pensada para as especificidades da instituição. Por isso, apesar da similitude dos propósitos últimos, as culturas institucionais não têm de ser miméticas.
Uma cultura institucional forte, baseada em valores sólidos, protege os bancos, inclusive das falhas de governação. Pode mesmo ser considerada um mecanismo de redução do risco.
A criação de uma cultura institucional é uma tarefa das administrações dos bancos e não dos reguladores e supervisores, conquanto estes últimos possam ter um papel coadjuvante na criação de uma cultura adequada.
Mudar a cultura de uma instituição é uma tarefa difícil e de longo prazo. Diz um antigo ditado holandês que a confiança parte a galope num cavalo e regressa a pé. Nos dias de hoje, é pior: a confiança pode perder-se à velocidade digital, mas o regresso continua a ser muito lento.
As falhas comportamentais não são, evidentemente, um exclusivo do setor financeiro. O problema é que no setor financeiro as consequências são mais danosas.
Dez anos volvidos sobre a crise financeira os protagonistas mais esclarecidos do setor bancário já perceberam bem como as falhas comportamentais podem ser custosas, a vários níveis. E, por isso, sabem que é do seu interesse e das instituições que gerem caminhar decididamente no sentido da recuperação da confiança e romper com a cultura que esteve na base da crise de 2008.
Todos esperamos que isso aconteça, pois todos beneficiamos. Não há desenvolvimento económico sem um setor bancário forte. A prova disso é justamente o que acontece quando falha.
Estamos, assim, a percorrer um caminho comum, a partir de posições diferentes. Para sermos bem-sucedidos, cada um tem de cumprir a sua missão. Pela parte do Banco de Portugal, reafirmo o compromisso de empenho total na prossecução da missão pública que lhe está cometida.
Muito obrigado.