Portugal Pós-Troika: Riscos e Oportunidades – O papel da Banca no Financiamento da Economia
Muito bom dia.
Começo por agradecer o convite que me foi endereçado para intervir na abertura desta 3ª edição da Conferência promovida pela Reuters e pela TSF.
Há cerca de dois anos e meio, tive a oportunidade de participar na 2ª edição desta Conferência. Por essa altura, em plena crise da dívida soberana na área do euro, assistíamos ao encerramento dos mercados grossistas para financiamento dos bancos nacionais.
Temos hoje um sistema bancário mais sólido e em melhores condições para financiar a recuperação sustentada da economia portuguesa. Vale a pena recordar o caminho percorrido desde então e perspetivar os desafios – não menos exigentes – que temos pela frente. É este o propósito da minha intervenção.
I. O CAMINHO PERCORRIDO
Começaria, então, pelo caminho já percorrido.
Temos hoje bancos mais capitalizados, mais transparentes e com uma situação de liquidez mais confortável. Beneficiamos de uma supervisão reforçada e de um quadro regulamentar mais robusto.
Os níveis de solvabilidade das instituições bancárias nacionais foram reforçados e, hoje, comparam bem com os níveis de solvabilidade das principais instituições bancárias europeias cotadas no mercado acionista.
No final de 2010, o sistema bancário português tinha um rácio Core Tier 1 de 8.1%. No final de 2012, o mesmo rácio atingiu 11.5%, claramente acima do limite mínimo de 10% estabelecido no Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) a Portugal. As operações de recapitalização levadas a cabo pelas principais instituições bancárias em 2012 - financiadas, em grande medida, pela facilidade prevista no PAEF - contribuíram decisivamente reforçar a solvabilidade do sistema.
Além da solvabilidade, melhorou consideravelmente a situação de liquidez das principais instituições bancárias.
O rácio crédito-depósitos dos oito maiores bancos reduziu-se de um valor próximo de 150%, no final de 2010, para cerca de 120%, em 2012. Verifica-se, deste modo, uma convergência gradual para uma estrutura de financiamento mais sustentável e menos sensível a alterações na perceção de risco por parte dos investidores internacionais. Esta evolução favorável do rácio de transformação reflete, por um lado, o comportamento dos depósitos dos particulares - que, após um crescimento acentuado em 2011, evidenciaram uma grande estabilidade em 2012 - e, por outro lado, uma contração do crédito bancário concedido.
Duas grandes instituições bancárias portuguesas regressaram, entretanto, aos mercados obrigacionistas. Trata-se, também, de um sinal encorajador, embora o custo e o volume das emissões realizadas não permitam ainda encarar estas operações como uma alternativa de relevante de financiamento.
Com uma situação de liquidez mais confortável, os bancos têm conseguido reduzir a dependência do financiamento do Eurosistema. Adicionalmente, as medidas não convencionais de política monetária adotadas pelo Banco Central Europeu conduziram ao alargamento significativo dos ativos elegíveis para operações de política monetária, trazendo o colateral disponível para níveis que são, atualmente, confortáveis.
Para fomentar a distribuição de liquidez entre os bancos portugueses, o Banco de Portugal lançou também uma nova plataforma para processamento de operações de mercado monetário interbancário, com ou sem garantia.
A melhoria dos níveis de solvabilidade e da posição de liquidez dos bancos foi acompanhada por um reforço muito significativo da supervisão do sistema bancário.
Em 2011, o Banco de Portugal lançou, no contexto do PAEF, um vasto programa transversal de inspeções, que ficou conhecido por SIP - Special Inspections Programme. Este exercício envolveu uma auditoria externa às carteiras de crédito dos bancos, a verificação dos métodos de avaliação de risco utilizados pelas instituições e a avaliação das metodologias usadas nos testes de resiliência.
O SIP forneceu uma fotografia da qualidade dos ativos dos bancos. Sendo esta uma realidade dinâmica, o Banco de Portugal passou a incluir, no quadro da supervisão regular do sistema bancário, inspeções periódicas transversais à carteira global de crédito, ou a classes específicas de ativos particularmente expostas a desenvolvimentos macroeconómicos ou de mercado. Pretende-se, desta forma, assegurar que, a todo o momento, os balanços dos bancos espelham de forma fiel a sua realidade patrimonial.
Assim, em 2012, o Banco de Portugal realizou uma avaliação detalhada das carteiras de crédito relativas aos setores da construção e da promoção imobiliária. Em 2013, serão realizadas duas auditorias especiais para confirmar o nível de prudência das imparidades das carteiras de crédito dos principais grupos bancários. Adicionalmente, serão realizadas duas auditorias focadas nos processos de gestão de risco de crédito das instituições, abrangendo designadamente os procedimentos de reestruturação de créditos problemáticos.
O Banco de Portugal intensificou igualmente a supervisão macro do sistema financeiro. O acompanhamento tradicional das instituições bancárias, fundamentalmente estático e feito numa base individual, é agora completado com uma visão prospetiva e sistémica, tendo por base planos de financiamento e de capital submetidos trimestralmente pelo bancos e a realização de testes de esforço.
Ao longo dos últimos dois anos, os instrumentos legais e regulamentares ao dispor das autoridades para a preservação da estabilidade do sistema financeiro foram também consideravelmente reforçados.
Destacaria, neste domínio:
- A alteração do regime de acesso dos bancos a operações de capitalização com recurso ao investimento público;
- O novo regime de intervenção preventiva, corretiva e de resolução;
- As alterações ao regime de garantia de depósitos;
- E as iniciativas relacionadas com a prevenção e gestão de situações de incumprimento.
O reforço do enquadramento legislativo prosseguirá no futuro próximo, designadamente com a aprovação da diretiva europeia sobre recuperação e resolução e correspondente transposição para a ordem jurídica interna. Sobre este ponto, permitam-me um breve parêntesis para sublinhar que, contrariamente à perceção corrente, os depósitos que não estão cobertos pelos fundos de garantia passam a estar mais protegidos do que no passado.
A proteção dos depósitos faz-se: através da exigência de níveis de capital adequados; através da realização de testes de esforço que permitam avaliar a resiliência dos balanços dos bancos à concretização de cenários adversos; e através da criação de mecanismos de capitalização forçada por parte dos acionistas das instituições, sempre que se revele necessário.
Isto significa que a ação do Banco de Portugal, ao aumentar os requisitos de capitais próprios e ao realizar testes de resiliência e auditorias transversais ao balanço dos bancos, visa não só reforçar a estabilidade do sistema financeiro, mas também reforçar a confiança dos depositantes e aforradores nacionais. Estabilidade financeira e confiança são, aliás, dois aspetos indissociáveis.
II. DESAFIOS
Os resultados que aqui destaquei são encorajadores e revelam que foi já percorrido um importante caminho na superação da crise; tal não significa, porém, que as dificuldades estejam ultrapassadas, ou que os desafios que enfrentamos sejam menos exigentes.
No plano nacional, o principal desafio que se coloca ao sistema bancário é o desafio da rendibilidade.
A rendibilidade dos bancos tem estado, como sabemos, sob forte pressão. Esta pressão resulta de uma combinação de vários fatores.
Em primeiro lugar, o incumprimento na carteira de crédito tem atingido níveis sucessivamente mais elevados, fruto da conjuntura recessiva que atravessamos.
Em segundo lugar, a margem financeira tem sido comprimida por um conjunto de circunstâncias, de que destacaria cinco:
- O baixo nível das taxas de juro de curto prazo, que comprime a margem associada aos depósitos à ordem;
- A manutenção de custos de financiamento elevados, associados, nomeadamente, à base de depósitos e aos instrumentos híbridos;
- A redução da atividade no mercado de crédito;
- O aumento dos níveis de incumprimento na carteira de crédito;
- A baixa rendibilidade da carteira de crédito à habitação contratada no passado.
Em terceiro lugar, e não obstante o ajustamento já realizado, os bancos suportam atualmente um volume de custos operacionais desajustado a uma “nova normalidade”, que será caraterizada por níveis de alavancagem na economia muito inferiores aos que prevaleceram no período que antecedeu a crise financeira internacional.
Este quadro de reduzida rendibilidade, a par da aplicação progressiva das regras de Basileia III, continuará a obrigar as instituições a gerir com particular prudência e de forma pró-ativa os seus níveis de capital.
A resposta a estes desafios exige que as instituições atuem em diversas frentes.
Exige, por um lado, que procurem soluções para reduzir o peso do crédito hipotecário contratado no passado com spreads reduzidos, libertando, desta forma, liquidez para nova atividade.
Exige, por outro lado, que as instituições prossigam de forma determinada os seus planos de racionalização de recursos para alcançarem uma redução estrutural dos custos.
Exige, finalmente, que procurem ativamente investidores estratégicos que possam trazer novo capital às instituições.
No plano europeu, importa quebrar, de forma credível e efetiva, a interação negativa entre o financiamento dos soberanos e o financiamento do sistema bancário e restabelecer o normal funcionamento dos mercados monetários e de dívida na área do euro. A criação da União Bancária é o elemento-chave deste processo.
Com a União Bancária, o Banco Central Europeu passa a ser responsável pela supervisão prudencial das instituições de crédito da área do euro, executando essas tarefas no âmbito do chamado Mecanismo Único de Supervisão, que reúne o BCE e as autoridades de supervisão nacionais.
A partir de meados de 2014, o BCE, através do Mecanismo Único de Supervisão, assumirá a responsabilidade pelo funcionamento de todo o sistema integrado de supervisão. O BCE será responsável pela supervisão direta das instituições de crédito mais significativas e caberá às autoridades de supervisão nacionais a supervisão direta de todas as outras instituições, sempre no respeito de um quadro comum.
Ao longo dos últimos meses tem sido desenvolvido um intenso trabalho de preparação da entrada em funcionamento do Mecanismo Único de Supervisão. O Banco de Portugal tem sido um participante ativo neste processo.
Sobre este ponto, gostaria de vos transmitir uma mensagem muito clara: o trabalho técnico está a ser levado a cabo com todo o empenho e rigor, para garantir que a transição dos sistemas nacionais para o novo sistema europeu se processará sem sobressaltos, com o objetivo de construir um modelo de supervisão sólido, eficaz e homogéneo da banca europeia.
Não tenho dúvidas de que o Mecanismo Único de Supervisão facilitará a aplicação convergente de um conjunto comum de normas à atividade bancária e determinará a harmonização dos procedimentos e práticas de supervisão em torno de padrões exigentes. Desta forma, contribuirá para aumentar a solidez dos bancos da área do euro, promover a confiança dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro europeu no seu conjunto.
No entanto, a construção da União Bancária só estará completa com dois pilares adicionais. Refiro-me, naturalmente, à necessidade de, no plano europeu, existirem instrumentos comuns de resolução de instituições e um mecanismo de garantia de depósitos, que possam atuar como rede de segurança de todo o sistema integrado de supervisão. Só assim serão garantidos níveis idênticos de confiança no seio da União Bancária.
Temos consciência dos desafios e dos obstáculos que enfrentamos neste processo. Estamos cientes de que construir uma rede de segurança comum que, por um lado, minimize as perdas para os contribuintes e, por outro lado, preserve a confiança de investidores e depositantes no sistema bancário e nas instituições é um exercício complexo que não está isento de riscos.
Gostaria, a este respeito, de vos deixar três mensagens.
Em primeiro lugar, quero deixar uma mensagem de determinação. O Banco de Portugal não deixará de pugnar por uma solução europeia para esses instrumentos de segurança do sistema e contribuirá com propostas e argumentos para que essa solução se possa concretizar rapidamente, assegurando um equilíbrio adequado entre os valores em presença.
Em segundo lugar, quero fazer um alerta. Não podemos perder de vista o caminho que nos conduzirá ao novo modelo. Hoje, Portugal ainda se encontra mais vulnerável do que outros a factos ou notícias que contribuam para agravar uma perceção de risco, mesmo que infundada, sobre o sistema bancário. Esta é uma situação que aconselha prudência e bom senso redobrados na gestão do processo de transição para a União Bancária plena.
E é com base nesta realidade que quero deixar a última mensagem sobre a União Bancária, uma mensagem de confiança. Com os exercícios de avaliação dos ativos bancários, de recapitalização das instituições e de aperfeiçoamento dos instrumentos regulamentares e das ferramentas de supervisão, que levámos a cabo desde 2011, ficámos mais preparados para enfrentar os desafios da União Bancária. Estou certo de que as boas práticas que desenvolvemos desde final de 2010 facilitarão a integração da nossa supervisão e das nossas instituições no Mecanismo Único de Supervisão.
Podemos ter, assim, uma esperança legítima e uma expectativa fundada de que, no médio prazo, a União Bancária trará benefícios efetivos e tangíveis para as nossas instituições e para os nossos cidadãos.
III. NOTAS FINAIS: FINANCIAMENTO DA ECONOMIA
Permitam-me que olhe agora “o outro lado do espelho”, que é o lado do tecido produtivo e das empresas que o compõem.
O financiamento da economia não depende apenas da solvência e da liquidez dos bancos; depende também de um vasto conjunto de fatores que afetam a perceção e o apetite pelo risco por parte das instituições bancárias.
Por outras palavras, a concessão de crédito às empresas não depende apenas da existência de procura de financiamento, mas também de essa procura de financiamento ser interessante do ponto de vista dos bancos, ou seja, de haver uma probabilidade elevada de recuperação do crédito concedido.
Fatores como as perspetivas de evolução da procura das empresas ou o grau de autonomia financeira das empresas influenciam grandemente as decisões de concessão de crédito.
As perspetivas de evolução da procura das empresas estão muito condicionadas pelo clima recessivo, que induz um aumento da aversão ao risco, quer dos investidores quer dos bancos. Estão também relacionadas com o ajustamento da economia portuguesa. Este ajustamento implica:
- Por um lado, uma redução estrutural do nível de despesa interna, com o consequente redimensionamento do setor não transacionável e, portanto, redução do crédito a este setor por falta de procura solvente;
- Por outro lado, melhores perspetivas para os setores orientados para o mercado externo, que tenderão a aumentar a sua procura de crédito quer para fundo de maneio quer para investimento.
Estas circunstâncias têm, por isso, influenciado não só o custo de crédito, mas também a sua afetação setorial: os setores da construção, imobiliário e comércio, mais expostos à evolução da procura interna, são os que registam uma redução mais acentuada do crédito; em contraste, o crédito às empresas exportadoras apresenta um comportamento mais favorável.
Estas tendências não deverão alterar-se significativamente num futuro próximo, já que os elevados níveis de endividamento das empresas e das famílias implicam que o estímulo ao crescimento económico terá de vir da procura externa.
Ainda assim, é possível reduzir a perceção de risco por parte dos bancos e melhorar as condições da oferta de crédito à economia. Poderemos adotar medidas que permitam diminuir a assimetria de informação e tornar mais transparente a situação financeira das empresas (em particular das PME), criar mecanismos de partilha de risco e promover o aumento da autonomia financeira das empresas.
A reduzida autonomia financeira das empresas portuguesas, nomeadamente quando comparadas com as empresas na maioria dos países na Europa continental, traduz uma dupla fragilidade do nosso tecido empresarial: uma fragilidade financeira, na medida em que as empresas são particularmente vulneráveis a alterações nas condições de financiamento, quer em termos de volume quer de taxa de juro; e uma fragilidade estratégica, dado que uma elevada alavancagem, por ser inconsistente com a salvaguarda da capacidade de resposta às alterações na envolvente, fragiliza o crescimento sustentado da empresa.
Esta situação é fruto de uma atitude pouco cautelosa por parte de muitas empresas, que apostaram numa estratégia míope de alavancagem máxima e distribuição de lucros. É também fruto de um sistema fiscal que privilegia o financiamento por dívida em detrimento de capital. É, finalmente, fruto do ambiente generalizado de alguma complacência que caraterizou o período anterior à crise financeira e que conduziu a uma expansão do crédito, nem sempre com adequada ponderação do risco envolvido.
Para termos uma noção das ordens de grandeza envolvidas, mais de um terço das empresas portuguesas que apresentaram lucros em 2010 e 2011 – e, sublinho, estou apenas a referir-me a empresas que apresentaram lucro - têm um rácio de autonomia financeira inferior a 30 por cento. O reforço de capital necessário para trazer a autonomia financeira até esse limiar de 30 por cento seria da ordem dos 18.4 mil milhões de euros, o equivalente a 11 por cento do PIB. Para trazer os níveis de autonomia financeira das empresas lucrativas até 50 por cento, o esforço de capitalização ascenderia a cerca de 55.6 mil milhões de euros, ou 32 por cento do PIB.
Precisamos, por isso, de encontrar soluções para reforçar significativamente o capital do tecido produtivo nacional. Diferentes vias merecem ser consideradas e combinadas:
- Reformar a tributação para garantir a neutralidade entre financiamento das empresas por dívida e financiamento por capital;
- Equacionar, no âmbito do novo quadro financeiro plurianual europeu, mecanismos de aumento do capital subordinado por contrapartida de uma redução do endividamento das empresas junto do sistema financeiro;
- Abrir o capital das empresas a novos investidores.
Naturalmente, estas matérias não se inserem na esfera das competências específicas do Banco de Portugal. Pela nossa parte, continuaremos a reforçar a supervisão, com o objetivo de garantir a suficiência de capitais e de liquidez dos bancos e de promover práticas de gestão sãs. Este é o melhor contributo que o Banco de Portugal pode dar para preservar a confiança, salvaguardar as poupanças e assegurar que o sistema bancário continua a financiar a economia com base numa avaliação prudente dos riscos.
Muito obrigado.
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