União Bancária – Onde Estamos?
De onde viemos: Do Mercado Interno à União Bancária
A União Bancária tem por trás dois passos que se encadeiam de forma quase causal.
A União Económica e Monetária surgiu, em 1999, como resposta à necessidade de estabilidade cambial, para preservar o funcionamento e a integridade do mercado interno. A criação de uma moeda única e a adoção de uma política monetária única, geridas por um Banco Central Europeu, resultaram da impossibilidade prática de conciliar liberdade de movimentos de capitais, políticas monetárias autónomas e estabilidade cambial no quadro do Sistema Monetário Europeu. O regime do Sistema Monetário Europeu não era compatível com o grau de abertura de economias participantes num mercado interno, nem com a existência de políticas monetárias autónomas. Com efeito, mesmo quando as políticas monetárias se encontravam alinhadas, a desconfiança em relação a este trilema podia gerar oscilações das taxas de câmbio. A inconsistência conduziu à crise cambial de 1992-93, em que a magnitude das oscilações forçou um alargamento das bandas de flutuação, com implicações diretas nos fluxos comerciais intra-UE.
Com o eclodir da crise financeira internacional em 2007-08, as limitações do quadro institucional da UEM tornaram-se evidentes. Os mecanismos existentes – com destaque para o Pacto de Estabilidade e Crescimento e a política monetária única – não foram capazes de prevenir a acumulação de importantes desequilíbrios entre os países da área do euro. Estes desequilíbrios resultaram de endividamento excessivo dos diferentes setores institucionais em diversos países e de evoluções divergentes das respetivas posições competitivas, num contexto de condições de mercado particularmente favoráveis, que não refletiam adequadamente a soberania da política económica nacional.
A divergência das posições competitivas foi exacerbada, nomeadamente (i) pela inexistência de mecanismos de concertação para acompanhar a evolução salarial no quadro da UEM e de mecanismos de formação de preços num contexto de baixas taxas de inflação, bem como (ii) por algum menosprezo da acumulação de défices externos em diversos países, porventura explicado pela menor criticidade de desequilíbrios de contas externas em uniões económicas numa fase mais avançada de integração.
Mediante a manifestação destes desequilíbrios, a alteração da perceção de risco pelos mercados traduziu-se na fragmentação financeira da área do euro – afetando não apenas as economias mais vulneráveis pela incapacidade de acesso a financiamento externo, mas também o próprio mecanismo de transmissão da política monetária e, como tal, a UEM.
As fragilidades reveladas pelo quadro da UEM tornaram o seu aprofundamento inevitável, conduzindo nos últimos anos:
• Ao reforço dos mecanismos de disciplina orçamental, com a adoção do Tratado Orçamental, do Six-Pack, do Two-Pack, e com o estabelecimento do Semestre Europeu como ciclo anual de coordenação de políticas na UE;
• Ao estabelecimento de mecanismos de prevenção da acumulação de desequilíbrios que afetem a posição competitiva dos países da área do euro (Macroeconomic Imbalances Procedure);
• À criação de uma União Bancária, com o objetivo de quebrar a ligação bancos-soberanos, responsável pela severidade da crise na área do euro;
• À criação de um mecanismo comum de financiamento de último recurso com condicionalidade associada (Mecanismo Europeu de Estabilidade).
Onde estamos: Uma União Bancária em construção
O estádio em que hoje nos encontramos é o de um quadro inegavelmente mais robusto do que o existente antes do eclodir da crise financeira internacional, mas ainda insuficiente para quebrar a ligação bancos-soberanos e garantir a existência de um verdadeiro mercado financeiro europeu.
As insuficiências que permanecem decorrem fundamentalmente de três circunstâncias:
Em primeiro lugar, a União Bancária, composta por três pilares, está ainda incompleta no plano institucional. Temos:
• Um Mecanismo Único de Supervisão, autoridade única de supervisão em funcionamento desde novembro 2014;
• Um Mecanismo Único de Resolução, com poderes de autoridade de resolução no plano europeu desde 1 de janeiro de 2016, mas com uma capacidade ainda limitada de financiamento do Fundo de Resolução Europeu;
• A intenção, assumida mas não concretizada, de criação de um sistema comum de garantia de depósitos.
Em segundo lugar, não temos ainda na Europa uma rede de grandes bancos com presença na totalidade do território, predominando um sistema bancário de base nacional. As instituições tendem a ter uma reduzida expressão no plano europeu, mas a assumir um caráter sistémico no território onde concentram a sua atividade. Esta realidade contrasta com a observada, por exemplo, nos Estados Unidos, onde coexistem grandes bancos que cobrem a totalidade do território e pequenos bancos locais, que não têm caráter sistémico.
No atual quadro de uma união bancária ainda em construção, as autoridades nacionais permanecem responsáveis pela estabilidade financeira no plano nacional, ou seja, permanecem responsáveis – e por isso, accountable (responsabilizáveis) – pela salvaguarda da confiança dos depositantes e do financiamento da economia nos seus países. No entanto, não dispõem nem dos poderes nem dos instrumentos para lidar com os impactos das decisões em matéria de supervisão, de resolução e de aplicação das regras de concorrência, as quais são tomadas no plano europeu e condicionam decisivamente as opções disponíveis às autoridades nacionais. Esta limitação de poderes e instrumentos não é, porém, percetível ao cidadão comum, dado que as autoridades nacionais – enquanto responsáveis pela estabilidade financeira no plano nacional – continuam a ser o decisor e o comunicador mais visíveis. A leitura incompleta do processo de decisão por parte dos depositantes enfraquece inevitavelmente a confiança na condução da política financeira e no próprio sistema. Assim, o condicionamento europeu da atuação das autoridades nacionais, num contexto em que a partilha de riscos a nível europeu é incompleta, não só dificulta a função de salvaguarda da estabilidade financeira como acentua os riscos subjacentes, ao afetar a confiança dos agentes no sistema financeiro.
Em terceiro lugar, temos na Europa uma multiplicidade de entidades a definir e a executar políticas setoriais com impacto material na evolução do sistema financeiro, com destaque para o Mecanismo Único de Supervisão (e para o Conselho de Governadores do BCE), o Mecanismo Único de Resolução e, na vertente regulatória e de aplicação das regras de concorrência, a Comissão Europeia. Estas entidades estão concentradas nos respetivos mandatos e, apesar dos evidentes spillovers (externalidades) da sua atuação, esta não é adequadamente coordenada nem enquadrada numa visão global da política setorial para o sistema financeiro.
Com efeito, tanto a regulação como, na sua vertente discricionária, as práticas de supervisão, resolução e aplicação das regras de concorrência têm impactos setoriais e nacionais. Estes impactos tendem a ser tanto mais relevantes quanto menor a coordenação entre as diferentes autoridades e quanto mais distante o centro de decisão do território afetado pelas decisões. Estas dificuldades surgem ainda agravadas pela ausência de mecanismos de decisão no plano europeu que garantam a agilidade, a rapidez e a confidencialidade indispensáveis a uma atuação eficaz na vertente de resolução bancária.
A situação em que nos encontramos encerra, assim, importantes desafios que requerem reflexão e ação urgentes no plano europeu, sob pena de agravamento da perceção negativa que se tem vindo a intensificar em relação à construção europeia.
A assimetria entre poderes e accountability (responsabilização) e a visão limitada que decorre da fragmentação de responsabilidades e da ausência de uma política setorial coerente no plano europeu criam incentivos perversos e, se não forem atempadamente corrigidas, poderão pôr em causa a sustentabilidade da própria União Bancária e dos objetivos que presidiram à sua criação.
Para onde vamos: Da União Bancária à União do Mercado de Capitais
A União Bancária é uma condição necessária mas não suficiente para garantir a existência de um sistema financeiro único europeu, que promova uma canalização eficiente das poupanças para as oportunidades de investimento dentro do território da União Europeia.
Sendo o financiamento na Europa dominado pelo sistema bancário, há que assegurar que os bancos têm a possibilidade de titularizar os seus créditos e de colocar esses títulos junto de investidores institucionais. Tal permitirá, por um lado, que os bancos europeus libertem fundos para financiamento de investimento, tenham alternativas de acesso ao mercado de capitais e, por outro lado, que seguradoras e fundos de pensões, que atualmente fazem aplicações em títulos de longo prazo emitidos fora da Europa, disponham de oportunidades de investimento em títulos europeus.
Esta evolução é dificultada pela fragmentação dos quadros fiscal e regulamentar (mercados de capitais, insolvências, etc.) prevalecente no plano europeu. Não sendo realista a harmonização dos quadros nacionais num calendário razoável, há toda a vantagem, em particular para os países de menor dimensão, na criação de um regime europeu de adesão voluntária que permita ultrapassar as barreiras identificadas.
Lisboa, 25 de janeiro de 2016