Intervenção Inicial do Governador Carlos da Silva Costa na Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do GES, ao processo que conduziu à aplicação da medida de resolução e às suas consequências
24 de março de 2015
Boa tarde Senhor Presidente e Senhoras e Senhores Deputados.
Decorreram pouco mais de sete meses desde que o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou aplicar uma medida de resolução ao Banco Espírito Santo, S.A. (BES).
Hoje já ninguém põe em causa que a medida de resolução permitiu preservar a estabilidade do sistema financeiro nacional:
- Os depósitos foram protegidos;
- Assegurou-se a continuidade do financiamento à economia; e
- Salvaguardaram-se os interesses dos contribuintes e do erário público.
Hoje são também muito claros os indícios de operações de descapitalização e falhas no modelo de governo do BES. A auditoria forense determinada pelo Banco de Portugal e os trabalhos desta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) têm sido decisivos para a investigação daqueles indícios e para a compreensão das razões que estiveram na origem do colapso do Grupo Espírito Santo (GES) e do BES.
O Banco de Portugal tem, desde a primeira hora, colaborado ativamente com esta Comissão, fornecendo a vastíssima documentação que lhe foi solicitada e habilitando-a com outros elementos que possam ajudar ao apuramento dos factos.
Nesta intervenção inicial parece-me importante:
- Dar nota dos desenvolvimentos mais relevantes posteriores à resolução do BES;
- Esclarecer algumas questões críticas que têm sido recorrentes nesta Comissão; e
- Concluir com algumas lições para o futuro.
I. Desenvolvimentos relevantes pós resolução do BES
Sobre os desenvolvimentos posteriores à medida de resolução deixaria quatro notas.
Em primeiro lugar, a resolução do BES não foi uma medida de destruição da instituição, foi sim uma medida de preservação da estabilidade financeira.
É importante ter presente que a salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro é uma das missões primordiais do Banco de Portugal.
O objetivo da supervisão bancária é promover a segurança e solidez dos bancos e do sistema bancário; não é proteger a todo o custo os seus acionistas e credores subordinados, quando a situação financeira da instituição se revela insustentável e com risco grave e iminente de incapacidade de cumprimento de obrigações.
No dia 1 de agosto de 2014, por motivo de factos graves e imprevisíveis, revelados nas contas do primeiro semestre do BES, o Banco de Portugal viu-se confrontado com duas, e apenas duas, opções: a resolução ou a liquidação do BES.
A liquidação do BES, o terceiro maior banco do País:
- Teria tido como consequências imediatas a cessação de pagamentos e a interrupção de todos os serviços financeiros prestados pela instituição;
- Teria, por isso, abalado a confiança dos depositantes no sistema bancário português;
- Teria acarretado custos de financiamento elevados, designadamente por via da ativação do Fundo de Garantia de Depósitos;
- Tudo com perdas para os acionistas e credores subordinados que, em caso nenhum, seriam inferiores às que resultam da medida de resolução.
Em segundo lugar, a gestão do Novo Banco tem permitido recuperar a confiança na instituição.
As contas do Novo Banco, no final de 2014, apresentam um rácio de capital Commom Equity Tier I de 9.6%, acima dos mínimos regulamentares.
A situação de liquidez do Novo Banco melhorou consideravelmente. Verifica-se desde outubro de 2014 uma recuperação assinalável dos depósitos de clientes – que, no início de março de 2015, eram superiores em cerca de 4 mil milhões de euros ao nível verificado em 4 de agosto de 2014. O aumento dos depósitos, juntamente com a alienação de ativos, permitiu reduzir significativamente o financiamento junto do Eurosistema.
Em terceiro lugar, o processo de venda está a decorrer favoravelmente.
O processo de alienação da posição acionista do Fundo de Resolução no Novo Banco está a decorrer com normalidade, verificando-se um forte interesse por parte de potenciais investidores.
Trata-se de um processo aberto, transparente, não-discriminatório e competitivo. Este processo tem vindo a ser acompanhado pela Comissão Europeia e beneficiará igualmente do escrutínio do Tribunal de Contas.
O processo de venda, que teve início no dia 4 de dezembro de 2014 com a publicação de convite para apresentação de manifestações de interesse, decorre com normalidade e de acordo com as expectativas iniciais, não registando atrasos materiais.
Sete entidades apresentaram propostas não-vinculativas para a aquisição do Novo Banco até à data-limite, no passado dia 20 de março. O Banco de Portugal encontra-se atualmente a analisar estas propostas e irá selecionar um número restrito de potenciais compradores para a fase seguinte do procedimento, que prevê a apresentação de propostas vinculativas. A seleção do Banco de Portugal será orientada pelos critérios definidos no caderno de encargos e publicamente divulgados.
A nova estrutura acionista do Novo Banco deverá ser conhecida no verão de 2015.
Em quarto lugar, o Banco de Portugal tem estado a trabalhar intensivamente na vertente sancionatória.
Como é do conhecimento dos Senhores Deputados, o Banco de Portugal, no início de julho de 2014, decidiu, ainda antes da medida de resolução, promover a realização de uma auditoria forense para:
- Avaliar o cumprimento das determinações prudenciais do Banco de Portugal;
- Apurar e documentar a existência de indícios de eventuais práticas ilícitas graves levadas a cabo pelo Grupo BES ou pelos membros dos seus órgãos sociais.
Esta auditoria, conduzida pela Deloitte, encontra-se em fase de conclusão. Os sumários dos dois primeiros blocos de trabalho já foram disponibilizados a esta Comissão.
O primeiro bloco respeita à análise do cumprimento das determinações específicas do Banco de Portugal por parte do BES e da ESFG. As conclusões apontam para a existência de indícios de violações do processo de “ring fencing”, com materialidade muito expressiva e com significativo impacto na situação financeira e patrimonial do BES. Estas violações terão tido origem numa intenção deliberada de alguns membros do Conselho de Administração do BES. Acresce a existência de fortes indícios de práticas passíveis de serem enquadradas no conceito de atos dolosos de gestão ruinosa em detrimento de depositantes, investidores e demais credores, praticados pelos membros dos órgãos sociais.
O segundo bloco refere-se às relações mantidas entre o BES e a sua filial angolana, o BESA.
Neste contexto foram identificadas:
- Deficiências do sistema de controlo interno do BES;
- Inadequação do sistema de controlo interno da ESFG;
- Ausência de medidas preventivas do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo no BESA;
- Incumprimento do dever de comunicação ao Banco de Portugal, pelo órgão de administração do BES e pelos seus membros, das situações relativas ao BESA com possível impacto no equilíbrio financeiro do BES;
A documentação de suporte obtida na auditoria será tida em conta para efeitos das averiguações em curso por parte do Banco de Portugal, no contexto dos processos sancionatórios instaurados ou a instaurar. Tendo sido identificadas situações com potencial relevância criminal, os relatórios destes blocos da auditoria forense foram já comunicados à Procuradoria-Geral da República.
Em consequência, o Banco de Portugal tem, neste momento, em curso investigações que podemos agrupar nas seguintes matérias:
- Incumprimento de determinações específicas do Banco de Portugal no processo de ring fencing;
- Avaliação do cumprimento das regras de controlo interno ao nível do Grupo BES/ESFG, nomeadamente nas relações com o BESA;
- Avaliação da legalidade das operações realizadas com, ou através da, Eurofin, entidade de direito suíço com ligações ao Dr. Ricardo Salgado e ao GES.
Relativamente a estas grandes linhas das averiguações em curso, existe a expectativa de as respetivas fases de investigação serem concluídas, progressivamente, em 2015 e no início de 2016. No caso de se confirmarem os indícios que determinaram a abertura dos processos, serão deduzidas as respetivas acusações contra os responsáveis.
II. Questões recorrentes na CPI BES
Passados em revista os desenvolvimentos que considero mais relevantes desde a resolução do BES, permitam-me que aborde três temas que têm surgido recorrentemente nas audições desta Comissão.
Primeiro, porque não foi afastada a administração do BES no final de 2013, ou pelo menos o presidente da sua comissão executiva?
No final de 2013, o Banco de Portugal não dispunha de factos demonstrados que, dentro do quadro jurídico então aplicável e atenta a jurisprudência, permitissem abrir um processo formal de reavaliação de idoneidade dos membros do órgão de administração do BES, em especial do presidente da sua comissão executiva.
O risco de as decisões do Banco de Portugal neste domínio poderem ser anuladas judicialmente era muito elevado e não podia ser ignorado. Adicionalmente, tratando-se de uma instituição sistémica e de uma empresa cotada, um processo de investigação e o eventual afastamento forçado dos principais administradores poderiam afetar seriamente a confiança na instituição e a estabilidade do sistema financeiro, e poriam também em causa a reputação do BES no mercado de capitais.
Neste contexto, e perante os factos de que ia tomando conhecimento, o Banco de Portugal seguiu duas linhas de atuação paralelas:
- Por um lado, o Banco de Portugal não aprovou os pedidos de registo para o exercício de funções de administração em outras entidades do Grupo BES que lhe foram submetidos, em maio de 2013, por vários membros da administração do BES. Foram solicitadas sucessivas explicações e esclarecimentos que acabaram por determinar a retirada dos pedidos de registo em março e abril de 2014;
- Por outro lado, foram desenvolvidas, no quadro da transição para um modelo de gestão profissionalizada, com nomeação de uma administração independente. Este processo conduziu à apresentação, em meados de abril de 2014, pelo Dr. Ricardo Salgado, da calendarização da sua sucessão e de um plano que pressupunha a saída dos membros da família do órgão executivo do BES. O processo encontra-se detalhadamente descrito em documentação oportunamente enviada a esta Comissão.
Em suma, ainda antes de terem chegado ao conhecimento do Banco de Portugal os factos supervenientes que permitiriam, com base sólida, fundamentar a abertura de processos formais de reavaliação de idoneidade – o que só aconteceu em finais de maio de 2014 – o plano de sucessão já tinha sido comunicado ao Banco de Portugal.
Uma segunda questão que me parece fundamental esclarecer é como podia o Banco de Portugal não ter conhecimento do que se passava no BESA?
Sendo o BESA uma instituição de crédito de direito angolano, a atuação do Banco de Portugal encontrava-se dependente da iniciativa de partilha
- De informação pelo Banco Nacional de Angola (BNA);
- Das análises de auditoria desenvolvidas pela KPMG.
Com efeito, o Banco de Portugal não tem competência pela supervisão em base individual das filiais no estrangeiro de instituições de crédito nacionais, mesmo que estas estejam incluídas no perímetro de supervisão em base consolidada. Estas filiais estão sujeitas, para todos os efeitos legais, à supervisão pelas autoridades dos países onde se localizam.
Nestes casos, a atuação do Banco de Portugal, enquanto supervisor consolidante, depende:
- Da natureza e qualidade da avaliação realizada pelos supervisores locais;
- Da informação por estes partilhada no quadro do processo de cooperação;
- Das análises realizadas pelos respetivos auditores locais.
Nas informações prestadas quer pelo BNA quer pela KPMG Angola e KPMG Portugal, nas certificações legais às contas do BESA e do BES, não foram identificados quaisquer factos que indiciassem a gravidade das situações que vieram a público em junho de 2014 relativamente ao risco da carteira de crédito da filial angolana.
Mais: as conclusões da auditoria forense sugerem que tais situações eram do conhecimento de administradores do BES, os quais tinham o dever de comunicação ao Banco de Portugal, o que também nunca ocorreu. Este incumprimento constitui uma infração grave e está integrado nos processos de contraordenação já instaurados pelo Banco de Portugal.
No início de janeiro de 2014, o BES informou o Banco de Portugal de que o Estado Angolano tinha prestado, em 31 de dezembro de 2013, uma garantia autónoma a favor do BESA no valor de 5,7 mil milhões de dólares, destinada a cobrir eventuais perdas na carteira de crédito e de imóveis. Em nenhum momento os termos e fundamentos da garantia se alicerçaram em problemas específicos do próprio BESA, mas antes na necessidade de apoiar um conjunto de empresas angolanas, no âmbito do plano de desenvolvimento de Angola para 2013-2017.
O Banco de Portugal questionou a elegibilidade da garantia para efeitos prudenciais por entender que não foi adequadamente demonstrado o preenchimento das condições exigidas para garantir essa elegibilidade. Sublinhe-se que ao Banco de Portugal foi dado conhecimento dos termos da garantia, mas não da lista dos créditos aos quais, em concreto, a garantia dizia respeito e que teriam figurado num Anexo do qual nunca lhe foi dado conhecimento.
O Banco de Portugal nunca pôs em causa a validade da garantia para cobrir os riscos de eventuais perdas associados à carteira de crédito do BESA, dado que essa avaliação competia exclusivamente ao BNA. Refira-se igualmente que a validade da garantia foi reconhecida pela KPMG Angola no relatório emitido com referência às contas de 2013 do BESA.
No início de junho de 2014, o Banco de Portugal tomou conhecimento de um conjunto de situações de elevada gravidade e materialidade significativa relativas à carteira de crédito do BESA. Na ausência da garantia soberana emitida a 31 de dezembro de 2013 pelo Estado Angolano, as situações identificadas comprometeriam a situação financeira do BESA e, consequentemente, do BES. Por isso, o Banco de Portugal solicitou, de imediato, esclarecimentos detalhados ao BES, à KPMG e ao BNA.
Em 14 de julho de 2014, o BNA enviou ao Banco de Portugal uma avaliação de risco efetuada ao BESA em junho de 2014, com referência a 31 de dezembro de 2013, revelando, apenas nessa data, uma alteração para “risco elevado” da notação atribuída ao risco de crédito do BESA, mas referindo que o risco era suportado pela garantia soberana emitida pelo Estado angolano. O BNA informou também que tinha requerido uma auditoria independente para avaliação da qualidade da carteira de crédito do BESA.
A informação em apreço transmitida pelo BNA contrariou a que havia sido anteriormente prestada. Esta é uma questão muito importante porque, como referi na minha audição de 17 de novembro passado, nas contas consolidadas do Grupo BES, o montante do financiamento concedido pelo BES à filial angolana não tinha qualquer impacto ao nível dos requisitos de capital. O que é relevante para os requisitos de capital exigidos em base consolidada é a avaliação do risco associada à carteira de crédito do BESA. E nessa avaliação, conforme anteriormente referi, o Banco de Portugal estava inteiramente dependente do auditor externo e do BNA.
Assim, até finais de julho de 2014, o Banco de Portugal não tinha informação que permitisse antever um impacto material relevante na posição de capital do BES em resultado da situação financeira da filial de Angola.
As expectativas do Banco de Portugal alteraram-se materialmente a partir de 27 de julho, quando o BNA informou que, no seguimento da inspeção determinada ao BESA, se constatara que parte dos créditos problemáticos não estava coberta pela garantia soberana, o que implicaria um reconhecimento de imparidades nas contas do BESA e uma ampla reestruturação da linha de crédito do BES ao BESA.
No dia 1 de agosto, dois dias antes da aplicação da medida de resolução ao BES, o BNA deliberou o saneamento do BESA, impondo um conjunto extenso de medidas corretivas, incluindo a exclusão de determinados créditos do âmbito da garantia concedida pelo Estado Angolano. Esta informação indicava claramente uma perda parcial do crédito do BES ao BESA ainda antes da medida de resolução aplicada ao BES, como foi aliás reconhecido em várias audições nesta Comissão.
A terceira e última questão prende-se com a situação dos clientes de retalho que adquiriram papel comercial emitido por empresas do GES aos balcões do BES.
Nas últimas semanas, tem-se assistido à intensificação das reivindicações dos investidores que realizaram aplicações em instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o GES.
Trata-se, como é sabido, de matéria que desde sempre mereceu a atenção do Banco de Portugal, e relativamente à qual o Banco de Portugal tem pautado a sua atuação pelo cumprimento estrito da lei, cujo primado não pode, em circunstância alguma, ser posto em causa.
Do quadro legal em vigor decorre, nomeadamente, que:
- O reembolso de dívida GES é da exclusiva responsabilidade dos respetivos emitentes, pelo que não estando em causa dívida do BES e nunca poderia verificar-se a transferência dessa responsabilidade para o Novo Banco;
- A hipotética atribuição ao Novo Banco de responsabilidades pelo pagamento de dívidas que não cabia ao BES pagar, à data da aplicação da medida de resolução, constituiria um incumprimento da obrigação legal de respeito pela hierarquia de credores do BES, colocando os titulares da mesma em posição mais favorável do que os credores subordinados do BES;
- Mais, resultando daí prejuízos para o Fundo de Resolução, estes teriam de ser absorvidos pelas instituições que nele participam e, temporariamente, teriam reflexo nas contas do Estado.
Com efeito, a menos que o BES já fosse comprovadamente devedor de certos montantes, no momento da aplicação da medida de resolução, os detentores de instrumentos de dívida emitida pelo GES não eram credores do BES e não poderiam ser credores do Novo Banco. A hipótese de o Novo Banco assumir perdas em benefício daqueles investidores, seria, por isso, não só injustificável como ilegal.
Os detentores de papel comercial do GES têm o direito de reclamar créditos sobre as massas insolventes das entidades emitentes. Em função do valor esperado de recuperação destes créditos, o Novo Banco pode desenvolver iniciativas comerciais junto dos seus clientes, através de propostas de compra do papel comercial que tenham em conta o seu valor de mercado e, desse modo, conceber propostas que valorizem esse papel e atenuem as perdas decorrentes dos investimentos realizados pelos clientes.
Naturalmente, o Novo Banco está obrigado a critérios de boa gestão, pelo que tais iniciativas só poderão ser promovidas se forem geradoras de valor para o banco, nomeadamente se não colocarem em causa os rácios de capital e se permitirem preservar a relação comercial do banco com os seus clientes.
Nessa perspetiva, qualquer proposta comercial tem de assentar no princípio da equivalência financeira, segundo o qual o Novo Banco deve pagar pelos títulos que eventualmente venha a adquirir aos seus clientes o valor correspondente à real estimativa de recuperação desses instrumentos.
Admitindo que é no interesse do Novo Banco preservar a relação comercial com os seus clientes, é admissível que o Novo Banco ofereça um prémio sobre a estimativa de recuperação dos títulos GES que estes detêm (desde que tal prémio se possa justificar à luz dos princípios de boa gestão e dos condicionalismos jurídicos da medida de resolução). Este prémio poderia ser entendido como contrapartida legítima dos benefícios para o Novo Banco da preservação da relação comercial com os clientes e o seu impacto para o banco pode ser limitado pela criação de um excedente de fundos próprios que os mesmos investidores ajudem a criar.
No entanto, é preciso ter presente que a situação dos detentores de títulos do GES é diferenciada.
Em particular há que distinguir duas situações:
- Em primeiro lugar, clientes que tenham sido comprovadamente vítimas de práticas de comercialização de títulos desajustadas ao seu perfil de risco ou grau de literacia financeira. Estes investidores terão que reclamar junto da autoridade de mercado e, na medida em que essa reclamação seja atendida, poderão ser considerados titulares de direitos indemnizatórios sobre o BES. Dada a sua natureza de credores comuns, estes investidores terão preferência sobre a maioria dos credores do BES, que são credores subordinados;
- Em segundo lugar, clientes que não beneficiam de qualquer garantia contratual e relativamente aos quais não há evidência de mis-selling. Esta categoria de clientes detentores de papel comercial do GES tem apenas direitos sobre as sociedades emitentes, sem prejuízo de o Novo Banco vir a propor para esta categoria de clientes uma solução comercial, como acima referi.
Uma outra ordem de considerações prende-se com o facto de o Banco de Portugal ter imposto a constituição de provisões nas contas da ESFG e, posteriormente, do BES, para mitigar o risco reputacional, que poderia conduzir a uma corrida ao banco, decorrente de eventuais incumprimentos de emitentes de papel comercial do GES.
Sobre este ponto, importa esclarecer, em primeiro lugar, que uma provisão é um registo contabilístico que pretende lidar com a incerteza e acautelar nas contas um passivo eventual, em obediência a princípios de prudência. Não representa passivos a pagar, nem direitos invocáveis por terceiros. A provisão constituída na ESFG foi anulada pela insolvência da própria instituição. A provisão constituída no BES manteve-se no balanço desta instituição.
Nos primeiros meses após a constituição do Novo Banco, era admissível que este viesse a constituir provisões para fazer face:
- À possibilidade de existência de garantias prestadas pelo BES no âmbito da comercialização de títulos de dívida do GES; ou
- À apresentação de uma oferta comercial àqueles clientes pelo Novo Banco.
Não se tendo materializado tais situações até à data de publicação do balanço inicial do Novo Banco (em dezembro de 2014), não foi, em consequência, constituída tal provisão.
Nestas condições, dadas as situações líquidas da ESFG e do BES e a natureza contabilística de uma provisão, a eficácia das provisões constituídas foi neutralizada.
III. Lições para o futuro
Como referi na minha audição de novembro passado, o caso do BES revelou:
- • Diversas fragilidades e limitações dos quadros legais de supervisão em diferentes jurisdições;
- • Práticas de governo, gestão e controlo do risco e auditoria deficientes;
- • Graves lacunas ao nível da literacia financeira.
Deste modo, parece-me fundamental que se retirem deste processo lições que diminuam a possibilidade de ocorrência de uma situação idêntica no futuro.
Efetivamente é meu entendimento que este poderá ser um dos principais resultados desta Comissão Parlamentar de Inquérito.
Entendo que as melhorias a introduzir deverão, entre outros, incidir nos seguintes pontos:
1. Alterações regulamentares no âmbito da composição dos grupos bancários e da relação com partes relacionadas e com entidades localizadas em outras jurisdições.
- Em primeiro lugar defendo que, ao nível europeu, não deve ser permitido que bancos façam parte de conglomerados mistos, porque essa situação favorece mecanismos de contágio difíceis de controlar;
- Em segundo lugar considero necessário rever o quadro legal e os requisitos prudenciais de instituições que têm filiais localizadas em jurisdições com limitações de acesso a informação relevante. Temos de assegurar a ausência de territórios de refúgio e a possibilidade de arbitragem regulatória, neste caso prudencial;
- Em terceiro lugar, penso que não é possível continuarmos com jurisdições no plano europeu que não controlam entidades que emitem volumes muito grandes de títulos de dívida que, por seu turno, são colocados em outros Estados-Membros, sem que haja penalizações ou severas limitações.
2. Em relação aos modelos de governo das instituições:
- É necessário reforçar a autonomia e a independência dos titulares dos órgãos de fiscalização e de controlo das instituições bancárias e assegurar que estes exercem as funções que a lei lhes atribuiu de forma plena e eficaz. Importa também garantir que a prática efetiva da instituição está conforme com as regras do seu modelo de governo. Para tal é essencial o escrutínio sistemático das práticas de governo pelo supervisor, com recurso a auditorias externas. Ao nível da administração executiva, deverá ser introduzida a limitação de mandatos para evitar o poder informal excessivo associado a mandatos muito longos;
- Adicionalmente, é fundamental introduzir melhorias na qualidade da prestação de contas pelos diferentes agentes económicos. A prestação de contas e a auditoria das mesmas têm de ser matérias de responsabilidade pública;
- Os auditores externos devem ser supervisionados por uma entidade independente e a sua designação deve ter uma limitação temporal obrigatória.
Esta é, aliás, uma área que está já a ser alvo de melhorias. Sob a égide do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, temos vindo a estudar opções de melhorias ao atual enquadramento regulatório e institucional da supervisão da auditoria com vista a garantir que sobre esta atividade recai uma supervisão eficaz e dotada de recursos, que contribui para a credibilização da informação divulgada ao público pelas empresas. As propostas, que serão em breve emanadas do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, serão naturalmente consistentes com o novo enquadramento regulamentar comunitário.
3. Uma outra área em que são necessárias melhorias diz respeito à proteção dos clientes dos bancos. Nesta vertente poderão ser consideradas várias medidas:
- Autonomização das áreas físicas e funcionais de comercialização de produtos bancários tipificados e de produtos de investimento;
- Reforço da padronização da informação pré-contratual dos produtos de investimento;
- Definição de princípios e regras para regular de forma intrusiva a política de incentivos das instituições aos seus colaboradores na comercialização de produtos financeiros, em particular dos emitidos pelas próprias instituições;
- Continuar a apostar na promoção ativa da literacia financeira com vista à melhoria dos conhecimentos financeiros da população, ainda que sabendo que os resultados se produzem, sobretudo, a médio e a longo prazo.
Num outro sentido, parece-me que este acontecimento demonstra que o regime de resolução, que constitui aliás um dos pilares da União Bancária, é eficaz na preservação da estabilidade financeira, mesmo perante uma situação de desequilíbrio financeiro grave de uma instituição de crédito de grande dimensão.
Hoje sabemos que já não é válido o paradigma do “too big too fail” e que há mecanismos que permitem assegurar a continuidade da prestação dos serviços financeiros, mesmo perante o efetivo colapso da instituição onde os desequilíbrios são gerados.
E mesmo conscientes de que a eficácia da intervenção do Banco de Portugal apenas pode ser avaliada quando se conhecer se existem perdas a suportar pelo Fundo de Resolução, e qual a sua magnitude, a verdade é que, como comecei por salientar, sete meses volvidos desde a aplicação de uma medida de resolução ao BES, ninguém põe em causa que a mesma permitiu preservar a estabilidade do sistema financeiro nacional. Cumpriu-se, assim, uma das missões primordiais do Banco de Portugal.
Para concluir, gostaria de dizer que o Banco de Portugal também está a fazer a sua própria avaliação da experiência neste caso.
Nesse sentido, decidi constituir uma Comissão independente para avaliar a atuação do Banco de Portugal enquanto autoridade de supervisão bancária durante os três anos que antecederam a aplicação da medida de resolução ao BES. A comissão inclui consultores externos especializados com experiência internacional e funciona de forma independente do Conselho de Administração do Banco de Portugal. Pretende-se que sejam apuradas oportunidades de melhoria na organização e nos processos de supervisão e identificadas iniciativas regulamentares e/ou legislativas que permitam reforçar a eficácia da supervisão do sistema financeiro português.
Adicionalmente, e dentro do mesmo espírito, foi constituído um grupo de trabalho para analisar os modelos e as práticas de governo, de controlo e de auditoria das instituições financeiras em Portugal. O objetivo é obter recomendações que permitam superar as eventuais limitações e deficiências detetadas, tendo como referência as melhores práticas.
Muito obrigado.