Intervenção do Governador Carlos da Silva Costa na II Conferência Reuters-TSF
Segundo os últimos dados disponíveis relativos a 2010, a situação económica portuguesa pode sintetizar-se no quadro seguinte:
- Um défice orçamental que se estima na ordem dos 7% do PIB e que compara com um défice médio de 6.3% para os países da área do euro e com um défice de 10.5% para o Reino Unido;
- Uma dívida pública de cerca de 83% do PIB, que compara com um valor médio de 84.1% para os países da área do euro;
- Uma taxa de crescimento de 1.4% em 2010, que compara com uma taxa de crescimento médio de 1.8% para os países da área do euro;
- Um valor de necessidades de financiamento da economia portuguesa, em 2010, medido pelo défice conjunto das balanças corrente e de capital, de 8.7% do PIB;
- E uma posição de investimento internacional devedora superior a 100% do PIB, incluindo uma dívida externa líquida de 85.3% do PIB, em 2010, da qual 48.0% corresponde ao sector das Administrações Públicas.
Trata-se, todavia, de uma fotografia instantânea, que tem de ser enquadrada em função das dinâmicas que a determinam. Isto é, para perceber onde estamos necessitamos de saber de onde vimos e para onde vamos. Só assim se alcança e se entende a dimensão dos desafios com que está confrontada a economia portuguesa, e a consistência da sua trajectória. Assim, importa ter presente que na década passada a economia portuguesa registou:
- Uma fraca taxa de crescimento económico nos anos que precederam a crise internacional - uma taxa média anual de crescimento de 1% entre 2001 e 2008;
- Um contínuo declínio da taxa de crescimento potencial, como reflexo da redução do crescimento da produtividade do trabalho, do capital e da produtividade total dos factores;
- Um crescimento do endividamento público que passou de 48.7% do PIB em 2000 para quase 83% do PIB em 2010, reflectindo um crescimento de cerca de oito pontos percentuais da despesa pública durante este mesmo período, apesar da redução dos custos do serviço da dívida decorrentes da conjugação da adesão ao euro e dos benefícios do designado período de grande moderação;
- Um crescente nível de endividamento das famílias, que passou de menos de 80% do rendimento disponível em 1999 para mais de 120% em 2008, como reflexo da maior facilidade de acesso ao crédito ao consumo e ao crédito hipotecário, tanto em termos de volume como de custo;
- Um crescente nível de endividamento externo, determinado pela recorrência de défices externos, como reflexo da expansão da procura interna, pública e privada, e uma deterioração da posição de investimento internacional líquida, que passou de -39.6% em 2000 para -108.5% em 2010.
- Por fim, como reflexo do papel nuclear do sistema bancário no financiamento da economia portuguesa e da crescente insuficiência poupança interna para fazer face às necessidades de financiamento do Estado, das empresas e das famílias, um hiato entre crédito e depósitos com consequente dependência do financiamento externo.
Este é o pano de fundo que importa ter presente,
- Em primeiro lugar, para entender as questões que os investidores externos colocam a propósito da sustentabilidade da trajectória das finanças públicas e do endividamento externo da economia portuguesa;
- Em segundo lugar, para entender a inevitabilidade da consolidação das finanças públicas e, por consequência, o significado de que se reveste a execução orçamental em 2010 e o cumprimento das metas estabelecidas para 2011 e 2012 e, simultaneamente, que o cumprimento destas metas constitui uma peça importante mas insuficiente para garantir a sustentabilidade das finanças públicas no médio e longo prazo;
- Em terceiro lugar, para entender que os imperativos com que está confrontada a economia portuguesa ultrapassam a consolidação orçamental, que é uma condição necessária mas não suficiente para a resolução dos problemas da economia portuguesa: esta implica o aumento da poupança das famílias e da capacidade de auto financiamento das empresas e o aumento da taxa de crescimento do produto potencial;
- E, por último, para entender a importância da estabilidade e da eficiência do sistema financeiro na dinâmica da economia portuguesa, nomeadamente na satisfação das necessidades de financiamento do sector produtivo e na optimização da afectação de recursos.
Assim, desde logo, importa ter presente que a economia portuguesa tem de continuar a contar com o concurso dos investidores externos, dado que não é realista pensar num reequilíbrio imediato das contas externas. O que significa que a confiança dos investidores externos constitui uma pedra angular do processo de desenvolvimento da economia portuguesa. E esta confiança terá de radicar na sustentabilidade da trajectória da dívida pública e, por consequência, do défice orçamental, e na sustentabilidade do nível de endividamento externo. A crise da dívida soberana constitui o resultado de uma trajectória de endividamento crescente, num contexto de maior aversão ao risco e de maior escrutínio da capacidade de reembolso por parte dos países endividados. A confiança dos investidores depende não só do nível de endividamento como da capacidade de reembolso, que, por sua vez, é função do crescimento do produto potencial e da natureza do processo de desenvolvimento. Isto é, a confiança dos investidores varia na razão directa da robustez do processo de crescimento da economia portuguesa, em suma, da sustentabilidade do respectivo processo de desenvolvimento.
Em segundo lugar, importa ter presente que o processo de redução do défice orçamental (processo que tinha sido prosseguido ao longo dos últimos anos e que foi interrompido em 2009 no contexto da crise financeira) foi retomado em 2010 e constitui um importante passo num processo crítico e mais vasto de reforma das finanças públicas, processo que tive a oportunidade de abordar noutras ocasiões e que, por isso, não vou hoje aprofundar. Limitar-me-ei a insistir que se trata de um processo que requer não só uma dimensão institucional e normativa como requer também um programa plurianual, vinculativo, que não só garanta a redução do rácio da dívida pública no PIB como constitua um limite ao crescimento da despesa pública, factor essencial para limitar o aumento da taxa de tributação e salvaguardar a atractividade do país como destino de investimento que sustente o produto potencial e o emprego.
Em terceiro lugar, há que reequilibrar o modelo de desenvolvimento, criando condições favoráveis ao desenvolvimento do sector dos bens transaccionáveis, o crescimento da produtividade dos factores trabalho e capital e da produtividade total dos factores e a inovação tanto ao nível dos processos de produção como ao nível das tecnologias e dos produtos. Importa ter presente que o modelo de crescimento e de criação de emprego dos últimos anos não é sustentável: assentou na expansão da procura pública, que se reflectiu no desequilíbrio das finanças públicas, e na expansão da procura privada, alimentada pelas condições de financiamento favoráveis de que beneficiaram as famílias, que se reflectiu num nível crescente de endividamento e numa redução da poupança. O modelo de crescimento e de criação de emprego dos últimos anos gerou um crescente rácio de endividamento, o qual, a não ser corrigido, se tornaria insustentável. A economia portuguesa tem de criar emprego no sector dos bens transaccionáveis, de modo a permitir:
- Por um lado, absorver o emprego que, por força do ajustamento da procura interna, o sector dos bens não transaccionáveis não poderá reter de modo duradouro
- E, por outro lado, compensar a redução da incorporação de trabalho por unidade de produto, que resultará do aumento generalizado, e indispensável, da produtividade.
A sustentabilidade do modelo de desenvolvimento pressupõe reformas estruturais mais vastas, com prioridade para as que podem ter impacto imediato sobre a competitividade, a capacidade disponível e a criação de valor dos sectores exportadores de bens e serviços. Sublinho que, em matéria de crescimento do produto potencial, não há causalidades mecânicas e fatais. O futuro determina-se através da forma como são afectados os recursos entre empregos alternativos e da qualidade das políticas públicas (e, em particular, do alinhamento de incentivos que promovem) e das estratégias empresariais.
Neste capítulo, importa ter presente o papel do designado sistema nacional de inovação, isto é, a rede de instituições dos sectores público e privado e o conjunto de mecanismos de relacionamento e interacção que determinam a produção, o acesso, a difusão, a absorção e as condições de exploração de novos conhecimentos e novas tecnologias por parte de uma dada empresa ou conjunto de empresas. A evidência empírica demonstra que despesas em I&D, o nível e os modos de educação e a articulação entre os subsistemas de educação e de formação profissional explicam o lugar que os diferentes países ocupam na divisão internacional do trabalho e, em particular, o padrão de especialização (especialização intersectorial ou, em alternativa, especialização intrasectorial de natureza vertical). Há que optimizar, por um lado, a articulação entre os três subsistemas (investigação, educação e formação profissional) e, por outro lado, a articulação do sistema nacional de inovação com as necessidades do tecido empresarial português, em particular na área da produção de bens transaccionáveis.
Por último, mas com importância crítica, é necessário manter e reforçar a estabilidade do sistema financeiro, dado o papel crucial que lhe cabe no funcionamento da economia portuguesa e, em particular, na optimização da afectação dos recursos financeiros, internos e externos, que canaliza para os sectores e agentes económicos com necessidades de financiamento.
O sistema bancário português está sólido. Não esteve exposto nem à crise do subprime nem a uma bolha especulativa no sector imobiliário. Dispõe de capitais ajustados ao nível de risco que tem hoje no seu balanço: o rácio tier 1 em 2010 é de 9% e o rácio do core tier 1 é de 8.2%. Naturalmente, sofreu o impacto da crise internacional e da quebra do crescimento. Como seria de esperar, entre 2007 e 2010, o rácio total do crédito de cobrança duvidosa aumentou de 1.5% para 3.3% e a rendibilidade dos capitais próprios baixou de 14.63%, em 2007, para 7.37% em 2010, depois de ter sofrido uma quebra em 2008, para 3.44%.
Todavia, o sistema financeiro português apresenta algumas especificidades de que é necessário cuidar.
Em primeiro lugar, e como reflexo do já referido desequilíbrio entre a poupança interna e as necessidades internas de financiamento, que resultou do modelo de desenvolvimento da economia portuguesa nos últimos anos, o sistema financeiro português apresenta um rácio de transformação de depósitos em crédito que, para o total do sistema, se situa em 1.44. Este facto determina uma significativa dependência do acesso ao financiamento externo. É este facto que explica que o sistema bancário português se tenha convertido num sistema muito exposto à crise da dívida soberana.
Em segundo lugar, importa ter presente que a adequação dos capitais dos bancos é uma realidade dinâmica. Por isso, tem de ser perspectivada tanto em função do actual nível de riscos constante do balanço como do impacto negativo que uma degradação da situação económica portuguesa poderá ter sobre a qualidade dos activos. Além disso, também tem de ser perspectivada em função dos requisitos adicionais de capital que resultam das novas regras prudenciais, sumariamente designadas por Basileia III, e, sobretudo, em função do facto de os investidores e as contrapartes tenderem a considerá-las como referenciais de solidez financeira ainda antes de se tornarem obrigatórias.
Neste contexto, os bancos portugueses têm que ter presente que a sua envolvente lhes impõe uma redução do hiato entre crédito e depósitos e o reforço dos capitais próprios.
Assim, os bancos portugueses têm de equacionar um processo ordenado de desalavancagem, através de uma alienação selectiva de activos, nomeadamente créditos, que lhes permita atenuar o impacto sobre o financiamento do sector produtivo, em particular sobre as empresas mais dependentes de financiamento bancário. Neste ponto, seria particularmente bem-vindo que as grandes empresas que têm ou podem ter acesso ao financiamento externo e ao mercado de capitais reduzissem o recurso ao crédito interno.
Em segundo lugar, os bancos portugueses têm de prosseguir o processo de reforço de capitais próprios, conscientes de que este vai ser um factor determinante da avaliação das contrapartes e dos investidores. Sabemos todos que as condições no mercado de capitais estão particularmente difíceis. Por isso, torna-se necessário que os bancos equacionem outras vias de alargar e reforçar as respectivas bases accionistas.
Em terceiro lugar, e tendo em consideração a importância crítica que tem a preservação dos níveis de rendibilidade e, por outro lado, a rigidez da margem financeira que resulta do peso relativo do crédito hipotecário, os bancos portugueses vão ter de estar particularmente atentos aos respectivos rácios de eficiência.
Por último, e de imediato, os bancos portugueses vão ser sujeitos a uma prova exigente tal como os demais bancos europeus. Os novos testes de resiliência, também designados por stress tests, têm em vista avaliar o comportamento dos respectivos balanços em condições muito mais adversas do que nos testes do ano passado. É essencial que demonstrem que eventuais insuficiências de capital, que resultem da acomodação das perdas induzidas pela deterioração da envolvente económica, podem ser adequadamente supridas. Por isso, e como resulta do compromisso assumido por todos os Estados-Membros, vai ser necessário prever os mecanismos que, caso necessário, serão accionados para o reforço dos capitais próprios, sejam eles específicos das instituições financeiras sejam eles de natureza pública (a chamada back-stop facility).
Em suma, e como disse de início, os resultados de 2010 constituem uma fotografia instantânea que tem de ser perspectivada em função das dinâmicas que a determinam. Trata-se de ter presente o ponto de onde vimos e o ponto onde queremos chegar. Vimos de uma trajectória de crescimento assente na expansão da procura interna. Pretendemos agora percorrer uma trajectória de desenvolvimento sustentado assente no incremento do VAB por activo, na criação de emprego com a reposição da sustentabilidade das finanças públicas e das contas externas. O primeiro passo foi dado em 2010. Mas a caminhada é muito exigente e pressupõe mais do que a consolidação orçamental: pressupõe um conjunto de reformas estruturais que induzam uma dinâmica de empreendedorismo e investimento produtivo que reforcem de modo sustentado a competitividade da economia portuguesa. Este é o desafio.
28 de Fevereiro de 2011
Carlos da Silva Costa