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Intervenção do Administrator Luís Laginha de Sousa na Conferência do ISCTE - "A Investigação para a Sustentabilidade": "Investigação para a Sustentabilidade – A perspetiva de um Banco Central"
Enquadramento
Muito bom dia a todos. Agradeço ao ISCTE pelo convite para estar aqui hoje e saúdo os meus colegas de painel. É um enorme gosto participar neste debate dedicado à investigação para a sustentabilidade.
Mesmo quando o tema da sustentabilidade é mediaticamente abafado pela pandemia, como tem acontecido desde há cerca de ano e meio, ele continua a ser absolutamente incontornável e sem a relevância minimamente beliscada. E são várias as características que tornam a sustentabilidade incontornável: a sua profunda atualidade; a sua criticidade para o nosso futuro coletivo; a sua abrangência; e também a sua complexidade.
Algo que conjuga todas estas características, não podia deixar de interpelar uma entidade como o Banco de Portugal que, enquanto Banco Central da República Portuguesa, tem dedicado uma atenção crescente a este tema, pelo facto de se cruzar com várias áreas da sua atividade.
O título deste painel inclui também uma palavra que está muitas vezes, diria mesmo, demasiadas vezes, arredada das discussões sobre sustentabilidade: trata-se da palavra “investigação”. É uma palavra que significa muito para uma entidade como o Banco de Portugal, e também por isso é com especial satisfação que estou aqui para tentar partilhar, ainda que de forma sintética, a perspetiva com que o Banco de Portugal aborda este tema
Perante um tema que, como referi, é tão vasto e complexo, vou estreitar o ângulo de abordagem. Para isso, vou socorrer-me de três dimensões, sinalizando em cada uma o foco da minha intervenção.
A primeira dimensão é o conceito de sustentabilidade. O acrónimo ESG coloca a tónica nas componentes ambiental, social e de governo das organizações e afirmou-se como o conceito dominante de sustentabilidade no universo das políticas públicas, das empresas e dos investidores. Na perspetiva de um banco central e supervisor financeiro, a vertente ambiental da sustentabilidade é particularmente relevante, e é por isso essa a vertente que trago para partilhar convosco. Isto porque, os riscos ambientais, associados a fenómenos como as alterações climáticas ou a perda de biodiversidade, constituem uma importante fonte de risco financeiro.
A segunda dimensão cujo âmbito importa limitar refere-se à natureza da investigação. Irei referir-me apenas à investigação aplicada, por ser a que predomina num banco central. Isto não significa uma menor consideração pela investigação fundamental, que está mais próxima da academia, nem em relação à investigação e desenvolvimento, que é mais próxima das políticas públicas e do mundo empresarial. Essas são igualmente da maior importância, mas os meus colegas de painel estão seguramente mais habilitados a falar sobre elas.
Em relação à terceira dimensão, não irei invocar áreas do conhecimento que não sejam as do domínio da economia e finanças, porque é nesse âmbito que se situa a atuação do Banco de Portugal. Não é difícil reconhecer que sobre ecologia, meteorologia e muitos outros domínios científicos relevantes para o ambiente, pouco ou nada teria a acrescentar.
Em suma, irei centrar a minha intervenção na investigação, de natureza aplicada, relacionada com as implicações económicas e financeiras dos riscos ambientais. E dentro deste âmbito, vou abordar dois aspetos:
- Em primeiro lugar, vou procurar explicitar os pontos de contacto entre a sustentabilidade ambiental e o mandato do Banco de Portugal;
- E, em segundo lugar, vou partilhar algumas notas sobre o papel que a investigação pode desempenhar. Para isso, vou recorrer a alguns exemplos de projetos que temos vindo a desenvolver no Banco de Portugal.
1. Sustentabilidade ambiental e mandato do Banco de Portugal
Entrando no primeiro aspeto, sobre os pontos de contacto entre a sustentabilidade ambiental e o mandato do Banco de Portugal, pode-se dizer que as alterações climáticas entram nas nossas preocupações “pela porta principal”. Isto porque se tornou claro, desde há alguns anos, que as alterações climáticas têm impacto direto no nosso mandato, mais concretamente na missão de salvaguardar a estabilidade do sistema financeiro.
Esta ligação direta com o mandato do banco central, resulta do facto das alterações climáticas serem uma importante fonte de risco para as instituições financeiras, sejam elas bancos, seguradoras ou gestoras de ativos e de fundos de pensões. Essa fonte de risco está associada a dois grandes tipos de risco:
- Por um lado, temos os chamados riscos físicos, relacionados com catástrofes naturais, como secas, cheias, fogos e furacões, cada vez mais recorrentes e intensas, e também com processos de longo prazo, como a subida do nível dos oceanos, ou a mudança nos padrões de precipitação. Estes fenómenos destroem ou desgastam ativos que foram financiados, ou que são usados como garantia, pelo sistema bancário, ou ativos que integram as carteiras de fundos de investimento, ou que estão cobertos pelas empresas seguradoras.
- Temos, por outro lado, os chamados riscos de transição, relacionados com o ajustamento da economia à descarbonização. Este ajustamento decorre, por exemplo, da alteração da tributação ou da regulamentação de proteção ambiental e do facto dessas alterações poderem impactar as empresas menos amigas do ambiente. Pode decorrer também do aumento da litigância jurídica associada à alteração do enquadramento, ou resultar simplesmente da alteração de preferências dos consumidores, que estão hoje muito mais atentos aos malefícios da emissão excessiva de carbono. E tudo isto pode acontecer de uma forma não linear, i.e., com os chamados “cliff effects”.
Se não identificarmos, avaliarmos e mitigarmos adequadamente quer os riscos físicos quer os riscos de transição, as alterações climáticas transformam-se numa ameaça à estabilidade financeira. O Banco de Portugal, tem no seu mandato a responsabilidade quer pela salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro quer pela supervisão bancária. Compete-lhe, por isso, promover a resiliência do setor financeiro ao longo do processo de transição que está a ser desencadeado pelas políticas tendentes a combater as alterações climáticas.
Acresce que, quando falamos em impactos gerados pelas alterações climáticas, ou gerados pela perda de biodiversidade e pelas políticas de adaptação e mitigação destes fenómenos, não é apenas ao nível da missão de salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro que esses impactos se fazem sentir no Banco de Portugal. Tudo isto é suscetível de impactar, de uma forma materialmente relevante, variáveis como o crédito ou a oferta e a procura agregada de bens e serviços e, por esta via, influenciar fatores como a taxa de juro natural, a transmissão da política monetária e o próprio mecanismo de formação de preços.
Daqui resulta uma ligação direta a outra componente do mandato do Banco de Portugal: trata-se da responsabilidade pela definição e condução da política monetária na área do euro. Apesar de ser uma responsabilidade partilhada com os outros bancos centrais da área do euro e com o BCE, ela não pode ser descartada. Intervir adequadamente no cumprimento do nosso mandato, implica compreender cabalmente de que forma as alterações climáticas poderão afetar a capacidade do Eurosistema para alcançar o seu objetivo primordial de manter a estabilidade dos preços.
2. Que papel para a investigação (do banco central)?
Feita a ligação entre o tema das alterações climáticas e os mandatos dos bancos centrais, neste caso do Banco de Portugal, a questão que se coloca a seguir, atendendo ao tema do Painel é: o que tem isto a ver com a investigação e, em particular, com a investigação, de natureza aplicada e centrada nas áreas da economia e finanças, tipicamente levada a cabo por um banco central?
A resposta é simples, e sem margem para dúvidas: tem tudo a ver, na medida em que é a investigação que sustenta o desenvolvimento de modelos teóricos e as aplicações empíricas que suportam a definição das políticas.
Da mesma forma que um bom diagnóstico é essencial para definir a terapêutica adequada quando somos acometidos de um problema de saúde, também em relação ao sistema financeiro e à economia precisamos, em primeiro lugar, de compreender as implicações dos riscos ambientais e das políticas de transição para: a evolução cíclica e estrutural da economia; o sistema financeiro; e a condução da política monetária. Precisamos, depois, de incorporar fatores climáticos e ambientais nos nossos modelos de previsão e de análise económica. Precisamos, finalmente, de aperfeiçoar o modelo de supervisão macro e micro prudencial, com um duplo objetivo:
- Por um lado, promover a resiliência do sistema financeiro – se é verdade que o ideal é evitar os choques, tal nem sempre é possível e por isso a segunda melhor opção, que muitas vezes é a primeira e única, é assegurar que o sistema financeiro como um todo, consegue absorver e digerir o choque sem deixar de desempenhar as suas funções;
- Por outro lado, importa incentivar as instituições financeiras a progredir na identificação, na medição e na mitigação dos riscos climáticos e ambientais a que estão, ou possam vir a estar sujeitas, num horizonte de médio e longo prazo.
Para todos estes propósitos a investigação é uma componente absolutamente crítica, e essa criticidade tem vindo a ser reconhecida na abordagem do Banco de Portugal ao tema da sustentabilidade ambiental e do financiamento sustentável: o tema faz parte da atividade científica do Banco desde há alguns anos, e tem vindo a ganhar relevância e abrangência.
Por isso, em relação à “Investigação”, gostaria de abordar sobretudo três componentes.
A primeira componente - no domínio da modelização económica, para referir, sem entrar em detalhes, dois projetos em curso que envolvem investigadores do Banco de Portugal:
- Um projeto que modela a transição para uma economia mundial assente em energias renováveis [1];
- E um outro que desenvolve um modelo económico para estimar os efeitos, em diferentes setores de atividade e entre países, das políticas de mitigação das alterações climáticas [2].
O caminho será, naturalmente, o de tornar “mainstream” a inclusão de variáveis climáticas nos modelos de conjuntura e previsão, para que os seus impactos macroeconómicos possam ser adequadamente considerados nas análises que fazemos.
A segunda componente de investigação é mais empírica e de apoio à formulação de políticas. Fizemos uma primeira avaliação da exposição do sistema bancário português aos setores de atividade mais sensíveis à transição para uma economia de baixo carbono. Os resultados preliminares deste estudo, que divulgaremos nos próximos meses, sugerem que mais de 60% das exposições dos bancos a sociedades não financeiras se encontram em setores relevantes para a política climática. Planeamos também iniciar ainda este ano um trabalho de modelização dos parâmetros de risco de crédito que integra variáveis relacionadas com as alterações climáticas para efeito de análise de cenários.
Um outro trabalho, em fase de conclusão e a divulgar na segunda metade do ano, sistematiza o conhecimento existente sobre os aspetos geofísicos, tecnológicos e económicos das alterações climáticas e sobre as políticas económicas destinadas a mitigar os seus efeitos, com enfoque no caso português.
No plano internacional, temos participado nos trabalhos em curso no Banco Central Europeu sobre as implicações das alterações climáticas para a condução da política monetária. Estes trabalhos enquadram-se na revisão da estratégia de política monetária, que deve ficar concluída no segundo semestre deste ano.
Contribuímos igualmente para os trabalhos da NGFS - Network of Central Banks and Supervisors for Greening the Financial System, que se tem vindo a assumir como uma referência a nível internacional. A NGFS, desde que foi lançada e no que a investigação diz respeito, colocou uma ênfase particular em aspetos como a elaboração de cenários climáticos e a eventual identificação um diferencial de risco com base climática. Mais recentemente, tem vindo a ganhar destaque o estudo da perda de biodiversidade e as implicações económicas e financeiras daí decorrentes.
Uma última nota para realçar o trabalho num projeto coordenado pela Agência Portuguesa do Ambiente para avaliar a vulnerabilidade do território nacional às alterações climáticas no século XXI. Os resultados deverão ser apresentados até ao final de 2023. É um projeto que visa apoiar a formulação de políticas públicas de adaptação às alterações climáticas e à transição energética, para diferentes setores de atividade e níveis de intervenção territorial. Sobre o Banco de Portugal recai a responsabilidade de avaliar os efeitos das alterações climáticas e das respetivas medidas de mitigação em variáveis como o produto interno bruto, o consumo, o investimento e o emprego.
A terceira e última componente de investigação que gostaria de sublinhar prende-se com a importância crítica dos dados. Se a investigação é instrumental para a nossa missão, os dados são instrumentais para a investigação. Não posso, por isso, concluir sem uma breve referência à importância crítica dos dados, que também já têm sido referidos como o petróleo do século XXI (provavelmente vamos ter que mudar esta caraterização para algo mais verde!).
Para compreender a interação entre as alterações climáticas e a economia e, assim, sustentar a formulação de políticas, é crucial que entidades públicas e privadas disseminem dados climáticos. Isto é especialmente importante para os cientistas do clima na compreensão e na simulação de trajetórias, que frequentemente servem de input aos modelos que os economistas utilizam na elaboração de cenários.
É aqui que se enquadra a missão do BPLIM, o Laboratório de Investigação em Microdados do Banco de Portugal, que dá apoio avançado a investigadores internos e externos na utilização de microdados portugueses. O BPLIM está a estudar a possibilidade de incluir dados de temperatura e de precipitação com localização geográfica fina. Cruzando esse tipo de dados com empresas e a respetiva localização, será possível realizar estudos com ênfase local sobre as interações entre o clima e a atividade das empresas.
Ter informação disponível, de qualidade e comparável é também uma condição necessária para que cada instituição financeira faça uma adequada avaliação, gestão e valorização dos riscos climáticos e ambientais. Nessa medida, é também um fator crítico para impulsionar a transição para uma economia mais verde. Por esta razão, o Banco de Portugal está também empenhado em contribuir, no âmbito do seu mandato, para os esforços empreendidos no plano internacional para desenvolver reportes de informação climática que sejam completos, úteis, consistentes e comparáveis.
Notas Finais
Para concluir, e porque a intervenção já vai mais longa do que o desejável, apesar de mais curta do que o tema requer, gostaria de enfatizar que a construção de conhecimento científico sobre um assunto tão vasto como as alterações climáticas, e abarcando as suas consequências para todos os agentes económicos, é um processo que nos acompanhará ao longo de todo o futuro que conseguimos abarcar.
Procurei mostrar que uma agenda de investigação que integre as preocupações que resultam da interação entre sustentabilidade ambiental e sistema financeiro ou política monetária é instrumental ao cumprimento da missão do banco central.
Continuaremos, por isso, a alocar recursos ao estudo rigoroso dos impactos das alterações climáticas, com o objetivo de aconselhar as autoridades portuguesas e servir o público interessado neste tema que não pode ser visto senão como crucial para o futuro do país.
Esperamos, e desejamos, que estes estudos sejam contributos positivos para “decisões baseadas em factos” e desejavelmente “boas decisões baseadas em factos”.
Muito obrigado.