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Entrevista do Governador Mário Centeno à edição da Sábado dedicada aos 20 anos do euro

Aqui estamos, no fim de 2021, para falar sobre o euro que temos na carteira há 20 anos. Daqui a 20 anos teremos ainda euros na carteira? 

Com um desenho novo, mas de certeza que vamos ter euros na carteira e na conta bancária.

 

Uma distopia publicada em 2010, “Super Sad True Love Story”, tem as personagens num futuro próximo a usarem euros do Sul e euros do Norte. Imagino que diga que esse cenário é ficção, mas está afastado porquê? 

Porque o euro é um momento de integração europeia e democrática, é uma escolha dos europeus em 19 democracias maduras. [O euro] tem um apoio junto dos cidadãos europeus que é hoje o maior de sempre, ou seja, não é uma instituição em retrocesso. Está a ganhar apoio e compreensão crescente. Devemo-nos perguntar porquê, até porque esta é a primeira crise em que isso acontece. Na sua curta história de vida, o euro costumava sofrer junto dos cidadãos em termos do apoio que tinha.

 

Porque mudou? 

Porque no período anterior à crise acumulámos três dimensões de robustecimento, muito significativas. Uma, institucional, com a união bancária e a criação do primeiro instrumento orçamental para os países da área do euro. E duas de resultados: o facto de termos toda uma trajetória de redução do risco orçamental na área do euro; e a terceira, também de redução do risco, que é termos um sistema bancário mais capitalizado para dar resposta aos desafios. Ninguém esperava que fosse uma pandemia, mas a acumulação destes episódios permitiu que o euro em 2020 pudesse ser a base para uma reação muito musculada à crise. E que as pessoas compreenderam, ao contrário da reação em 2008.

 

As pessoas sentiram-se protegidas.

Sentiram-se protegidas. É isso que a moeda lhes oferece e essa conquista não foi criada em 2020. As condições foram criadas antes. Tive a felicidade de poder viver isso como presidente do Eurogrupo. Acho que foi o período talvez mais decisivo para eu lhe poder responder à primeira pergunta que me fez, se daqui a 20 anos estaremos com euros nos nossos bolsos. A Europa cresce e integra-se com saltos de integração, não é um processo totalmente contínuo.

 

Os saltos acontecem em crises.

Muitas vezes em crise, mas estes desenvolvimentos que referi foram todos conseguidos no período mais longo de crescimento da área do euro. Cresceu durante mais de 25 trimestres consecutivos, nunca antes tinha acontecido a este grupo de países.

 

Em que medida é que toda essa estabilização e recuperação cai quase toda em cima do Banco Central Europeu? Até que ponto se está a sobrecarregar a política monetária em detrimento de avanços de natureza política no euro? 

Talvez 2020 tenha sido o primeiro momento em que a política monetária não esteve a falar sozinha na resposta às crises. Conseguimos fazê-lo de forma a afastar o que eram os receios que sempre existiram na área do euro, de risco moral, de os países terem comportamentos não compatibilizáveis com uma moeda comum. E fizemo-lo dando outro salto de integração, a emissão de dívida comum, que parecia uma impossibilidade uns meses antes. Teve a ver com o sentido de responsabilidade face à crise pandémica, mas não teria sido possível, ou não teria tido a mesma eficácia, sem os desenvolvimentos que referi. Esse salto de integração, que financia o "Next Generation EU" [de onde sai dinheiro para os planos nacionais de recuperação], tem um valor de integração, mantidas as devidas proporções, semelhante à criação do euro.

 

Há dois anos se calhar era impensável.

Há dois anos as reuniões [do Eurogrupo] acabavam aceleradamente quando nos aproximávamos desse tema.

 

A presença de Portugal no euro é um sucesso? Ou há um lado duplo, de bênção e de maldição? 

Todas as transformações implicam desafios. Uma avaliação rigorosa necessitava de definir qual era a alternativa.

 

Era não termos entrado no euro.

Tenho dúvidas de que a experiência antes do período de convergência para a entrada no euro tivesse sido particularmente feliz. Tivemos crises financeiras muito próximas, no fim dos anos 70 e no princípio dos anos 80. O País ganhou muito com a entrada para a então CEE e o percurso natural desta integração europeia foi a adesão ao euro. Mas estes processos têm desafios. O País levou demasiado tempo até compreender institucionalmente [as implicações] e a retirar todos os benefícios de estar no euro. Mas também é verdade que, felizmente, foi um dos grandes impulsionadores deste último movimento de redução do risco. Os resultados orçamentais e financeiros do País no pós-crise das dívidas soberanas provam que hoje temos a plena consciência do que podemos beneficiar por estar no euro, e do que precisamos de fazer. Lembro os quatro anos de convergência com a média da área do euro, que antecederam a crise pandémica. Nunca tinham acontecido no período do euro.

 

Mas aconteceram em circunstâncias muito específicas: uma política monetária extremamente favorável, preço do petróleo baixo, todos os países a recuperarem em simultâneo. Para uma pequena economia aberta como a nossa...

Em 2016 não é necessariamente verdade, a presença da política monetária face à dívida portuguesa começou a reduzir-se logo em abril de 2016, por limites impostos no programa de compra de dívida. O País conseguiu aproveitar um período que se lhe proporcionou, também pela intervenção das autoridades nacionais a seguir ao programa de ajustamento, e conseguiu indicadores que não pode perder de vista.

 

Estou a falar consigo e por vezes está a falar de si como ministro das Finanças, quase com um duplo chapéu.

É um duplo chapéu naturalíssimo. Estou a falar de uma experiência de Portugal que leva a que hoje a nossa dívida já não seja utilizada nos exercícios de stress financeiro entre os países da área do euro e que leva o FMI, só para falar fora desse período que o Bruno estava a dizer, a colocar o rácio da dívida pública portuguesa em 2026 abaixo da Bélgica, da França e da Espanha. Isto é uma tendência que o País não pode deixar de prosseguir porque é a que nos permite retirar todos os benefícios de estar no euro.

 

O BCE fez parte da troika e o Banco de Portugal defendeu as políticas do programa de ajustamento. O Banco de Portugal revê-se nesse passado? É difícil separar os anos em que foi ministro dos anteriores, há um contínuo.

É evidente que há um contínuo e que há uma perceção nacional sobre os desafios, muitos inadiáveis, que se colocavam à economia portuguesa. Todo o trabalho de recuperação daquilo que é a credibilidade da economia portuguesa foi e é um trabalho que teve muito valor e que tem de ser continuado. Por isso há pouco lhe dizia que indicadores como a dívida ou o défice orçamental não são do passado. Não há nenhuma descontinuidade nesse processo. Há a adaptação de políticas [nacionais], o que muito naturalmente deve ser assumido, e alguma evolução em termos europeus. Se fizer uma coletânea de dirigentes europeus do período entre 2008 e 2012 que dizem que se arrependeram, ou que afinal não estavam completamente certos ao impor políticas de austeridade coordenada na Europa, vai ver que estão lá quase todos. Alguns foram meus colegas no Eurogrupo.

 

Antes da crise das dívidas soberanas vivemos uma estagnação que era atribuída ao desajustamento entre a nossa economia e o euro. Depois houve um resgate que em boa medida também foi um reflexo dos problemas da moeda. Se só olharmos para isto parece que o euro não fez muito por nós. Devemos olhar mais a longo prazo?

Temos de nos fixar num processo de transição que a economia e a sociedade portuguesa sofreram neste período, que não teve de todo a ver com a pertença ao euro, mas que permitiu que hoje estejamos no euro de forma diferente da que estávamos no início deste século. O euro evoluiu para uma área monetária e económica mais robusta. A instituição euro não estava preparada para proteger os países que dela faziam parte em 2008. Isso é hoje quase consensual.

 

Mas agora está? 

Agora está claramente melhor, mas nunca ponho de parte que este processo tem de continuar. Por exemplo, ainda não temos um sistema europeu de proteção de depósitos. Há caminho a fazer.

 

Esses resultados e o papel do BCE acabaram por relegar para segundo plano a questão da dívida pública, mas a pandemia criou uma pressão adicional. A dívida e os défices deixaram de importar? 

Não deixaram. Todos os setores saem deste período com mais dívida. Há uma compreensão muito grande hoje sobre a dívida em cada país no debate da área do euro. Foi por isso que conseguimos fazer emissões conjuntas de dívida. Uma das expressões que mais usei enquanto presidente do Eurogrupo, no desenho dos mecanismos de apoio na primavera de 2020, foi que devíamos construir soluções que permitissem alisar o custo da pandemia ao longo do tempo e entre os agentes económicos. E a parte de tempo é crucial na emissão de dívida conjunta. A partilha deste risco é uma conquista enorme. Espero que 2022 e 2023 e os anos seguintes consigam estar [à altura]. Para que isso aconteça todos temos de fazer a nossa parte.

 

Qual é a nossa parte? 

Ter a compreensão do que significa ter mais dívida e do que significam os défices públicos, porque esse problema está connosco, como com todos os países da área do euro. Precisamos de manter essa atitude. Mas há pouco não lhe disse outras dimensões nacionais em que acredito que hoje estamos diferentes do que estávamos no princípio do século. Vou singularizar as qualificações. Pela primeira vez em 900 anos – há um certo risco nesta minha frase [sorri] – temos a geração entre 20 e 24 anos com níveis de escolaridade acima da área do euro. Isto era impensável para Portugal. Essa capacitação do País é aquilo que mais me permite afirmar que, se forem criadas todas as outras condições de previsibilidade das políticas públicas e de emprego qualificado, temos agora o ingrediente mais importante. Estávamos a anos-luz da Europa neste ingrediente.

 

Um dos feitos do euro tem sido a inflação baixa, mas está a subir. O que pode levar o BCE a abandonar a estratégia de esperar para ver? 

O BCE tem desde o início da pandemia adaptado as suas medidas à leitura dos riscos de fragmentação financeira e dos indicadores de inflação. O verdadeiro aumento das taxas de inflação ocorreu entre outubro e novembro, não sabemos ainda os dados de dezembro. Estamos a levar muito a sério os sinais da taxa de inflação, mas temos também a perceção de que muitos dos fatores que justificam este aumento de preços estão associados à pandemia. Portanto temos de esperar e ter paciência os bancos centrais são dos poucos agentes económicos que podem ter uma paciência muito grande para deixar estabilizar todo o processo pandémico e normalizar a economia. Mas não o vamos fazer de braços cruzados e, portanto, vamos adaptar o ritmo de compras [de dívida] à nova realidade. Já o fizemos na reunião de dezembro e vamos continuar a fazê-lo. Todas as instituições têm uma previsão para a inflação em forma de "U" invertido, atingindo o pico no fim de 2021 e no início de 2022, com uma mais ou menos lenta desaceleração ao longo de 2022. Vamos ter tempo para reagir.

 

Temos vivido tempos inéditos de taxas de juro nulas, que os portugueses parecem ter incorporado como um novo normal. Isto pode mudar? 

O processo de desalavancagem da economia portuguesa nos últimos 10 anos foi único no mundo. Reduzimos índices de dívida em percentagem do PIB quer no setor privado nas famílias e empresas quer no público. Os portugueses mesmo antes da crise tinham percebido a importância da redução do endividamento e esse processo deve ser retomado rapidamente. Não me parece que antes da crise estivéssemos a jogar um pouco com essa baixa taxa de juro, alavancando a atividade em mais dívida.

 

O euro vai mudando. Haverá um novo desenho das notas e há a ideia de deixar cair as moedas de 1 e 2 cêntimos. Como está essa medida? 

Está nas mãos da Comissão Europeia. Os números são muito interessantes: há neste momento 140 mil milhões de moedas de euro em circulação e metade são moedas de 1 e de 2 cêntimos. Estas moedas têm um custo de produção e tratamento que vai muito para além do seu custo facial. Alguns países, isoladamente, já fizeram essa transição, retirando as moedas de 1 de 2 cêntimos. Isso é feito encontrando uma fórmula para os arredondamentos, que faz com que todas as somas sejam arredondadas para O ou 5, o valor mais próximo. Tem um impacto muito pequeno e transitório na inflação, no nosso dia a dia.

 

Que países deixaram de usar essas moedas? 

A Holanda e a Finlândia.

 

O lançamento do projeto do euro digital foi a resposta do BCE à pretensão de gigantes privados da tecnologia, como o Facebook, de lançarem moedas concorrentes das dos bancos centrais? Há uma batalha por poder? 

Há algo acima dessa lógica de batalha, que é a necessidade de manter a confiança num sistema que é essencialmente fiduciário. A única instituição que neste momento permite garantir isso são os bancos centrais. Não há uma questão de querer impor regras por predominância, mas pelo bem comum. Uma das características de uma moeda é a reserva de valor e um ativo para ser moeda precisa de previsibilidade no seu valor. É por isso que nos preocupamos tanto com a inflação, o grande fator de desvalorização da moeda. Quando transpomos isto para um ativo que tem flutuações dramáticas, às vezes intradiárias, obviamente não trabalhamos num conceito que se aproxime do papel da moeda. A ideia da digitalização é a resposta a um desafio colocado pela sociedade, e permitido pela tecnologia, de simplificarmos as transações do ponto de vista do processo, dos custos e do tempo. 

 

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