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Entrevista do Governador Mário Centeno ao Público

O BCE mudou a meta de inflação de "abaixo mas próximo para 2%" para unicamente 2%, salientando que essa meta é simétrica, algo que já vinha sendo dito mesmo antes da pandemia. Não são mudanças pouco relevantes, tendo em conta as alterações ocorridas na economia nas últimas duas décadas?

Aquilo que fizemos foi trazer para a estratégia do BCE um conjunto de elementos que podem ser lidos como confirmando interpretações anteriores. Esses elementos agora ficaram enquadrados e clarificados. Do ponto de vista estatutário, não estava estabelecido o objectivo simples, claro e simétrico para a inflação. E para além disso, também trouxemos para cima da mesa um quadro analítico distinto daquele que existia, em que as dimensões financeiras assumem um papel muito importante e em que a análise económica é também reforçada. Temos usado a expressão holística, que é a ideia do equilíbrio geral para onde a política monetária olha quando toma decisões. E isso é muito importante, porque a política monetária estava sustentada numa análise que era essencialmente monetária e agora este quadro clarifica de forma muito transparente o papel de outras dimensões.

 

O que fizeram foi então passar para o papel uma prática que já era corrente no BCE nos últimos anos?

E dizer a todos que aprendemos as lições do passado, nomeadamente quando o papel do banco central não foi exactamente aquele que poderia ter sido. Refiro-me a questões como a da liquidez, dos mecanismos de transmissão da política monetária, o entendimento amplo do que significam os riscos à estabilidade financeira e do impacto que a política monetária tem nesses riscos. Também fazer com que a política monetária esteja enquadrada com outras políticas, por exemplo a política macroprudencial no caso dos riscos para a estabilidade financeira, mas também a dimensão do relacionamento com a política orçamental. Acho que todo o trabalho que foi feito para chegar a estas duas páginas de declaração, mais 15 páginas da nota que acompanha essa declaração, revela a importância que este conjunto mais amplo de perspectivas hoje se associa à política monetária.

 

Quando fala das lições do passado, quando o banco central pode não ter desempenhado o seu papel, refere-se à última crise do euro...

Às duas últimas crises, na verdade, à crise financeira e depois à crise das dívidas soberanas. Não foi apenas responsabilidade da política monetária, mas uma das âncoras que hoje identificamos como estando bastante diferente no enquadramento em que nos movemos é a completude das instituições do euro. Ainda que insistamos, e bem, que elas não estão completas, elas hoje estão bastante mais maduras e enquadram não só a política monetária, mas também a orçamental, e isso é bom.

 

O que é que muda exactamente com esta nova meta de 2%?

Hoje, temos um cenário macroeconómico que é caracterizado por estarmos já há muito tempo próximos de uma taxa de juro muito baixa, próximo de um patamar que nos preocupa. E a política monetária continuará a ter como grande objectivo a ancoragem da inflação a este objectivo de 2%, com uma aproximação simétrica a esse objectivo, o que significa que se permitem desvios acima e abaixo e que estes são igualmente penalizáveis do ponto de vista da nossa função de reacção. Isto é um mundo bastante diferente daquele que tínhamos até aqui, que permitirá ao BCE, perante cenários como aqueles com que fomos confrontados, transmitir uma função de reacção compatível com essa ancoragem das expectativas. É por isso que as palavras são tão importantes. Incluir e trazer para a revisão da política monetária todos estes conceitos tem um valor grande para o futuro próximo.

 

Mas esta revisão da estratégia implica uma mudança imediata da actual política monetária, das taxas de juro?

Não. Com os dados que temos hoje, é possível e expectável, e é aliás aquilo que os mercados antecipam, que a política monetária siga o seu curso, não tendo alterações apenas decorrentes desta revisão da estratégia. Mas todos esperamos, e avaliaremos no futuro, que esta revisão da estratégia tenha consequências na ancoragem das expectativas de inflação de médio prazo. A nossa expectativa é de que tenha, porque claramente isso não tem acontecido nos últimos anos, independentemente da avaliação, que é muito positiva, do papel que o BCE teve no conter dos efeitos negativos das diferentes crises.

 

Porque é que o BCE não foi mais longe, passando a tentar atingir a meta de inflação em termos médios, ao estilo daquilo que a Fed fez no ano passado?

Há um debate grande sobre se a utilização da média da inflação (inflation averaging) é eficaz para a condução da política monetária. Essa discussão torna-se muito facilmente técnica e não há uma conclusão clara e inequívoca. No BCE, não temos a definição de uma meta de inflação média, temos uma abordagem simétrica que permite desvios acima e abaixo, que os penaliza igualmente e que tem, de forma mais transparente, um objectivo claro, que é o da ancoragem das expectativas no médio prazo da taxa de inflação em 2%.

 

Mas fazê-lo poderia significar que a política do BCE poderia ser expansionista ainda durante mais tempo...

Infelizmente, ainda estamos longe desses níveis. Ainda não há uma ancoragem das expectativas em 2%. A previsão que temos neste momento para a taxa de inflação de 2023 é de 1,4%. Essa previsão foi obtida com uma estratégia de política monetária que agora deixou de existir. Agora, há um aumento do objectivo de inflação, há uma diferença muito grande na forma como se consideravam desvios positivos e negativos. Na versão que agora deixou de estar em vigor, os desvios para cima não eram permitidos.

 

Mas os discursos dos responsáveis do BCE já permitiam que isso acontecesse...

É verdade que, em Julho de 2019, o BCE assumiu a simetria em comunicado, mas é muito diferente esta abordagem que agora está sistematizada e compaginada com todos os outros instrumentos. A intenção é a de que esta alteração tenha um papel importante na ancoragem das expectativas de inflação no futuro. E isso é avaliável, tendo em conta que se definiu que a próxima avaliação será em 2025, não falta assim tanto tempo quanto isso. É uma preocupação grande, pelo menos numa boa parte do conselho, saber se foi suficiente o que foi feito para garantir essa ancoragem. O debate existiu e a solução de compromisso que foi encontrada foi esta. Eu penso que é equilibrada.

 

No meio da crise anterior, uma das respostas que o BCE acabou por dar foi - com o discurso de Mario Draghi em 2012 - ao risco de fragmentação na zona euro, por causa da dificuldade de alguns países conseguirem financiar-se nos mercados. Essa capacidade de intervenção do BCE ficou explícita nesta estratégia?

É dado um papel muito acrescido à análise da estabilidade financeira. Ela aparece explicitamente com um papel duplo. Não só via riscos para a estabilidade financeira da política monetária e, numa dimensão mais vasta, mais próxima do discurso do Mario Draghi - e que tem que ver com a fragmentação na área do euro, que tem sido contida -, mas também através dos instrumentos de liquidez dados ao sector bancário ou através dos programas de compras de activos. Esses instrumentos, a flexibilidade da sua utilização e a sua própria flexibilidade são situações novas e que agora passaram a ser assumidas. Estão traduzidas na estratégia e podem ser comunicadas a todos de forma mais inteligível.

 

A revisão de estratégia dá algum passo no sentido de dar maior importância a objectivos como o crescimento ou o emprego?

Há uma crítica que se faz aos bancos centrais, e que tem alguma razão de ser, que tem que ver com a dificuldade de comunicarem com públicos mais vastos, para além dos especializados, que estão mais ligados aos mercados. Esta estratégia também tem esse objectivo e daí a referência de que, sem prejuízo da estabilidade de preços, a política monetária deve ter em atenção o papel do crescimento económico, do emprego, da estabilidade financeira ou das questões climáticas. Na declaração da estratégia, traduzimos o conjunto de princípios orientadores da política da União Europeia a que a política monetária não pode estar isenta, seguindo a hierarquia que temos, primeiro o controlo de preços e depois todas estas matérias. E isto também é algo de bastante novo na forma como o banco central se afirma do ponto de vista estratégico.

 

Mas o BCE continua impossibilitado pelo seu mandato de dar, ao estilo da Fed, prioridade ao crescimento?

Não temos um mandato dual e não quisemos nem pedimos um mandato dual, mas mostrámos como, sendo inovadores nas medidas que adoptamos, podemos acomodar bem, sem prejuízo do papel primordial do controlo da inflação, outros princípios. Quando se é inovador e com sucesso, não devemos descartar trazer essa inovação para o nosso quadro de acção. Cada uma daquelas palavras escritas na declaração pesam e elas foram, num tom de grande compromisso, pesadas uma a uma. E eu acho que estão lá todas.

 

Para um país como Portugal, que teme uma subida de taxas de juro por causa dos seus níveis de endividamento, o que pode significar esta nova estratégia? Dá-nos confiança num período mais longo de taxas de juro baixas?

A taxa de juro é um instrumento que se adapta à evolução da economia e, como sabemos, não é à evolução da economia de Portugal, é à evolução da economia da zona euro. Daí a importância de, em Portugal, coordenarmos ciclos económicos e outras variáveis à evolução na zona euro. Portugal vinha de um conjunto de anos de convergência e houve muitos indicadores que convergiram com a zona euro. Não é assim no endividamento, de facto, onde, apesar da convergência, ainda estamos muito acima. E isso torna-nos mais sensíveis a flutuações na taxa de juro. Esta revisão de estratégia dá um passo muito significativo na capacidade que o BCE tem de manter políticas monetárias acomodatícias em períodos de subida da inflação acima dos 2%, desde que de forma temporária e moderada. Desse ponto de vista, creio que é uma boa notícia para a necessidade que Portugal tem de ter um período continuado de transição de convergência destes indicadores com a zona euro. Não podemos perder essa oportunidade, temos de retomar esse caminho assim que a evolução da pandemia o permitir. As decisões tomadas na Europa no ano passado e que continuam a ser tomadas este ano, e aqui incluo claramente a política monetária, têm vindo no sentido de atribuir tempo para que este processo se materialize. Em Portugal, não podemos ficar parados.

 

Nas compras de dívida, houve numa fase inicial a expectativa de que a revisão de estratégia poderia também prever a uma maior flexibilidade na acção do BCE, nomeadamente relativamente à percentagem de dívida que o BCE poderia deter de cada país e aos desvios relativamente à chave de capital, algo que seria importante para Portugal. Mas isso não aconteceu.

Agora, passou a haver uma listagem de instrumentos que passaram a ser assumidos como parte do conjunto de instrumentos de política monetária de que o BCE dispõe. E uma estratégia não precisa de ir mais longe. O debate sobre os instrumentos concretos tem vindo a ter-se ao longo da sua implementação e vai agora ter um passo importante nas próximas semanas, porque vamos debater o conceito de forward guidance, o papel do programa de compras de activos que já existia e do programa de compras de emergência ligado à pandemia - PEPP. Esse programa, na sua formulação actual, termina as suas compras em Março de 2022, mas depois há um período de reinvestimento que vai até ao final de 2023, pelo menos. E nesse período de investimento não há retirada de estímulos. O conceito de flexibilidade demonstrou ser muito importante na fase inicial do PEPP, mas convém dizer que o programa teve um sucesso de tal maneira significativo, com estabilização dos mercados, que a flexibilidade depois não foi usada de forma activa. Tem havido uma normalização das compras para uma situação igual à que ocorreria se não houvesse flexibilização. Muitas vezes, a existência dos instrumentos, e neste caso desta flexibilidade, é o suficiente para produzir os efeitos desejados, sem ter de os passar à prática.

 

Sendo assim, não teria sido melhor prever a flexibilidade logo na estratégia?

É uma matéria mais de implementação de um instrumento do que de estratégia. Na estratégia, não devemos atar as nossas mãos demasiado. Devemos definir a estratégia de forma a que ela nos possa ser útil em todas as situações que possamos vir a enfrentar. Mas essa discussão vai estar sempre em cima da mesa, brevemente e quando no futuro tivermos de desenhar novos instrumentos ou adaptar os existentes.

 

Devemos temer os efeitos do final desses programas de compra de dívida?

Estes instrumentos tiveram muito sucesso, contribuíram de forma muito positiva para atingir os objectivos e essa lição, naturalmente, não pode deixar de ser levada em conta quando nos tivermos a adaptar e, em alguns casos, estivermos a fazer a sua retirada, porque não devemos recear esse momento. Mas não o podemos antecipar. Se lermos as palavras de todos os membros do conselho, há um grande sentido de responsabilidade e preocupação sobre esse momento. Ele vai ser analisado de forma muito cuidada e à luz de um conjunto alargado de informação, onde se inclui o sucesso da flexibilidade.

 

Da experiência de quase um ano que já tem no conselho de governadores, observa muita divergência de opiniões entre os seus membros?

Da minha experiência, também como ministro das Finanças e, em particular, como presidente do Eurogrupo, tenho-me deparado no conjunto de matérias que temos debatido no BCE com menos linhas vermelhas do que aquelas que eram colocadas nos debates entre ministros das Finanças. Neste momento, existe um grande sentido de pragmatismo e de necessidade do lado do BCE de que a política monetária seja compreensível pelos cidadãos da área do euro, que as condições de financiamento de todos os sectores se mantenham favoráveis. E isto requere um posicionamento político que é pouco dado a linhas vermelhas.

 

Também no debate sobre a estratégia?

As linhas vermelhas não estiveram muito presentes neste debate. Houve um sentido muito grande de compromisso.

 

Mas com divergências?

A decisão foi por unanimidade, mas claro que essa unanimidade não reflecte a posição de cada um individualmente, mas sim o consenso que se conseguiu criar.

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