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Entrevista do Governador Mário Centeno ao Jornal de Negócios

Tem alertado para a necessidade de fusões ou concentrações no setor financeiro. Tem alguma operação em mente? 

Não, não. Aliás, eu termino sempre essa frase dizendo que o mercado é que tem de as decidir. Felizmente, conseguimos reduzir o nível de risco na banca em Portugal para as médias europeias, conseguimos ter hoje bancos que estão mais capitalizados do que a média europeia (...).

 

Um casamento recorrente de que se fala é o do Novo Banco com o BCP. Veria com bons olhos um cenário de fusão entre estes dois bancos? 

Todas as frases que diga em relação a esse negócio podem mover o mercado e o papel do banco central não é mover o mercado. Estou a ser pedagógico em relação ao mercado e à forma como vejo a banca (...). Num cenário de digitalização, de concorrência com ativos digitais que vai colocar desafios acrescidos à banca tradicional, que essas fusões resultem destes mecanismos de mercado é aquilo que mais desejo. 

 

Uma fusão deste género traria estabilidade ao setor? 

As instituições vivem sempre numa tensão entre serem muito grandes, e menos flexíveis muitas vezes, ou mais pequenas e mais flexíveis. Ultrapassada esta crise de crescimento sobre o serem muito grandes – e as duas que referiu são duas instituições importantes e significativas no mercado português – já não é essa matéria que se coloca. Portanto, o que eu acho é que as sinergias [que] possam surgir desse emparelhamento ou de qualquer outro que seja sustentável no mercado português, seriam benéficas para o sistema bancário, num contexto europeu que se deverá pautar por um ímpeto adicional à sua integração.

 

Mas há aqui um contexto específico: o Novo Banco passa por um processo de reestruturação que está em fase final. Está a ser preparado ou para entrar no mercado ou ter um novo acionista de referência. E o maior acionista de um banco, como bem referiu, de dimensão e referência no sistema financeiro nacional está com dificuldades de liquidez. É uma pressão acrescida sobre a estabilidade financeira. Esse cenário é mais propício a que possa haver fusões? 

A estratégia de acionistas detentores de bancos não tenho condições para comentar. Acho que é preciso focarmo-nos na estabilidade das instituições e qualquer das instituições hoje presentes no sistema bancário português tem um nível de capital, de rácios de liquidez, de solvabilidade e níveis de exposição ao risco muito baixos. Ou melhor, muito baixos os que têm que ser baixos, e muito altos os que têm de ser altos. Ou seja, não estamos perante uma situação em que a necessidade de reestruturação surja por situações de dificuldades das instituições. Isso não se coloca em nenhuma circunstância.

 

Não o preocupa, portanto, a situação financeira da Fosun como acionista do BCP? 

Mas a Fosun não é um banco em Portugal. 

 

É um conglomerado e já tivemos problemas no passado com conglomerados.

Mas o BCP é uma instituição que tem todas as características que eu acabei de dizer em termos de redução de risco e de aumento de capital. 

 

Há um risco de um excesso de concentração de capital espanhol no sistema financeiro em Portugal? 

Nunca coloco a questão dessa forma. Lá está, e por isso mesmo é que era importante que o mercado determinasse estes resultados. Nós somos uma economia aberta, somos uma economia bastante mais dinâmica do que a espanhola, com menos problemas nalgumas dimensões, coisa que também nos custa entender – financiamo-nos a custos mais baixos do que a economia espanhola, por exemplo –, temos uma dinâmica industrial hoje que não fica atrás da espanhola e isto reflete-se no sistema financeiro. Valerá pela capacidade que conseguir demonstrar – e tem demonstrado – nestas dimensões. E é esse o caminho que temos de seguir. A redução do risco na economia portuguesa é significativa, isto é a variável mais importante para o desenvolvimento de um sistema financeiro saudável, as nossas taxas de emprego são mais altas do que as espanholas, as nossas taxas de desemprego são muito mais altas do que as espanholas. A economia portuguesa tem que continuar a acreditar neste caminho.

 

No passado já houve uma contração dos bancos espanhóis quando a economia portuguesa necessitou. Isso aconteceu na crise das dívidas soberanas e no processo de ajustamento.

Mas nós estamos numa situação completamente diferente.

 

Certamente que sim. Mas aí o peso da nacionalidade da banca pesou na economia.

Não consigo subscrever essa frase. O que lhe posso dizer é que a resposta que os bancos dão aos mercados onde atuam tem a ver com esses mercados, com a capacidade de esses mercados responderem e de lhe darem garantias de evolução. Olhemos para Portugal em 2015: tinha rácios de NPL (sigla inglesa que designa crédito malparado) sobre o crédito total que rivalizavam com os de Chipre e da Grécia, os mais altos da Europa. Não tem nada a ver com a nacionalidade. Havia um risco intrínseco na economia portuguesa que coibia outros capitais, fossem eles espanhóis ou de outras latitudes, de fazer negócio com Portugal. O que conseguimos fazer a partir dessa data – e o país conseguiu à custa de um trajeto de grande sucesso nessa redução do risco – foi precisamente mudar a face dessa realidade. O rácio de NPL veio de17% em 2016 para 3%. O capital dos bancos foi diversificado, houve a capitalização da CGD, capital dos quatro continentes foi para os maiores bancos. Tudo isso é a atração de interesse pelo nosso sistema financeiro e pela nossa economia que, numa economia aberta e integrada na Europa, temos de almejar.

 

A banca está mais atrativa para que surjam investidores novos que permitam uma fusão no mercado? 

Está mais atrativa pelas boas razões. Não porque tenha perdido valor, mas porque ela hoje é mais resistente, mais resiliente, tem melhores resultados e níveis de risco mais baixos.

 

E isso abre a porta a investidores capazes de apoiar operações de fusão.

Quero acreditar que desde que o mercado interprete a necessidade de haver as fusões, que não serão feitas por via administrativa.

 

Deixou um aviso aos bancos de que ficava à espera de que começassem a refletir a subida das taxas de juro nos depósitos. Está minimamente satisfeito ou tem sido um processo difícil? 

Em linguagem técnica a primeira derivada está certa, ou seja, o sinal está certo, a dimensão ainda temos de continuar. Tenho para mim dois princípios importantes. O primeiro é o de que aos bancos é dada uma função social e os bancos têm a mais nobre dessas funções sociais que é a de serem guardiões das nossas poupanças. É um mercado de confiança. E faz parte dessa confiança assumir uma responsabilidade social. Mais do que uma componente da rentabilidade dos bancos há uma dimensão social que os bancos têm de desempenhar. A segunda dimensão disto é o nosso trabalho coletivo. Conseguir todos aqueles resultados na banca requereu a existência de bancos capazes de o fazer, uma dimensão de política capaz de transmitir ao mercado que as instituições faziam sentido e a terceira dimensão, talvez a mais importante, de que os bancos durante um momento muito difícil tiveram uma resposta muito positiva de Portugal. Nunca houve crises de depósitos no país, nunca houve nenhuma dúvida no espírito dos portugueses da necessidade de tornar mais robusto o sistema bancário. Houve um aporte financeiro muito grande – público – para que isso acontecesse. Portanto, acho que é altura de todos podermos continuar nesta tarefa comum e há uma função social na captação de depósitos e na sua remuneração que os bancos não podem deixar de fazer.

 

Houve agora uma reorganização do conselho de administração do Banco de Portugal. O que se pretende com estes novos rostos? 

Era uma alteração natural porque havia mandatos que terminavam. Não há aqui nada de instrumental. Foi importante que o Governo e o ministro das Finanças tivessem entendido a necessidade de reajustar o número de pessoas no conselho [de administração], atendendo às cada vez maiores funções na área da resolução, das criptomoedas, à necessidade de trazer novas valências para o conselho. Já disse que o conselho é o mais qualificado em termos de formação e seguramente o mais completo que o banco tem em muitas décadas. Espero que o nosso lema de proximidade e confiança nos cinco anos possa ter maior tradução.

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De que forma é que o escândalo FTX põe em causa a reputação dos criptoativos? Alerta para a necessidade de maior regulação? 

A necessidade de regulação já era sentida. Tanto é assim que esperamos que o acrónimo MiCA, a regulação europeia deste tipo de ativos, possa ver a luz já no primeiro trimestre de 2023. Como sabe, os processos legislativos europeus são longos e este está a chegar ao fim, o que significa que estamos há muito a tratar desta questão. Talvez este não tenha sido dos mais longos, porque a urgência é, de facto, grande. Este mercado precisa de ser regulado e de ter a supervisão que não tem hoje. É muito importante que tenhamos essa perceção, não há supervisão. A única função – e já não é pouca – que o Banco de Portugal tem é a de autorizar as entidades a operar a partir de Portugal, mas os clientes portugueses podem fazer operações com entidades já autorizadas no espaço europeu. Ao fazer isso, o BdP não olha para a operação, mas para o plano de negócios, para quem dirige as empresas, planos de risco e de contenção do risco. 

 

Têm feito algum trabalho adicional ou bloqueado alguns destes agentes? 

Eles têm que ser autorizados pelo Banco de Portugal também numa lógica de branqueamento de capitais e de financiamento de terrorismo. São estas as lógicas para as quais olhamos. 

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Apresentou recentemente o Boletim Económico que fez algumas atualizações das projeções económicas. No próximo ano o crescimento vai reduzir-se de forma bastante acelerada, há uma redução da taxa de poupança. Preocupa-o o ano de 2023? 

A desaceleração do crescimento já aconteceu. Nós tivemos, do final do ano de 2021, princípio de 2022, para o resto do ano, uma fortíssima redução do ritmo ao qual a atividade económica cresce. O ano de 2023, desse ponto de vista, prossegue esta tendência e depois, em linha com as hipóteses que temos no exercício e as previsões que são feitas para a economia global e também da área do euro, uma recuperação a partir do segundo semestre de 2023. Portanto, às vezes, as taxas anuais enganam-nos um pouco na dinâmica que observamos desse ponto de vista. Não temos nenhuma novidade intrínseca porque a desaceleração já é uma realidade.

 

Referiu sinais de resistência. Quais são esses sinais? 

Nós temos sido sempre surpreendidos em alta com os números do crescimento económico. Isto é verdade quase que desde o processo de recuperação da crise da covid. E nos últimos trimestres, o crescimento na área do euro e também em Portugal tem levado a que as previsões no trimestre que passou tinham sido sempre revistas em alta. À medida que o tempo passa vamos revendo em alta, ligeira, os números da economia europeia quando estamos a falar da atividade económica. E esse é um sinal de resistência. Outro sinal de resistência, mais claro ainda, vem do mercado de trabalho. Não é só em Portugal, mas é especialmente em Portugal, que o mercado de trabalho se tem comportado de forma muito resiliente, surpreendentemente resiliente, quer ao nível do emprego, quer ao nível dos salários.

 

Esta é uma crise completamente diferente.

E isso é muito importante porque deve enquadrar a análise que fazemos da situação presente e retirar algumas das ansiedades que vamos tendo à medida que vamos ultrapassando fase após fase desta crise. Isso aconteceu porque a crise foi temporária. E todos os agentes económicos perceberam que a crise pandémica era temporária, em 2020. Felizmente, isso comprovou-se. Depois, o sucesso foi tão grande na recuperação que gerou pressões inflacionistas. As primeiras pressões são em consequência da recuperação da crise e em algumas economias que não as europeias, em consequência das políticas de apoio à própria recuperação. Estou a pensar, por exemplo, nos Estados Unidos.

 

A globalização, nos termos em que até agora a entendíamos, acabou? 

Gosto sempre de retirar peso à frase como a colocou, sendo que concordo com ela. A globalização sempre foi um processo dinâmico. Acho que estamos a assistir a uma reglobalização.

 

Onde é que esta reglobalização deixa a economia europeia? 

Deixa-a, como aliás a todas as outras, num momento de redefinição.

 

E sob a ameaça de uma recessão.

A recessão é ainda evitável. Não está em nenhum dos cenários base apresentados pelo BCE, OCDE e Comissão Europeia. Não é parte do cenário base que temos para a economia portuguesa. Há algumas economias que estão a ser mais afetadas, uma delas é a alemã, mas os dados que estamos a observar desta economia são mais positivos do que aqueles que estão subjacentes a esse cenário. O meu ponto é: nós podemos evitar essa recessão. Hoje, com os instrumentos que temos e com o que conhecemos da evolução da economia, isso ainda é possível.

 

Mas a estratégia do BCE não pode induzir essa recessão? 

A versão do cenário base onde a recessão mais facilmente seria induzida é o cenário em que a inflação não cai. As taxas de juro partiram de um valor muito baixo, mas cada vez que o BCE sobe as taxas de juro há um aperto das condições financeiras da economia. Elas continuam historicamente baixas.

 

É impossível fazer esse ajustamento sem dor? 

É impossível fazer este ajustamento da inflação a partir do momento em que a inflação deixou de ser temporária e contida nos bens energéticos. Depois adicionámos a pressão sobre os bens alimentares, em consequência da guerra e ao longo dos meses houve uma difusão deste impacto. Quase todos os bens do cabaz que compõe o nosso índice de preços [subiram].

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A subida dos juros é suficiente para travar a inflação e fazê-la descer? 

Estamos convencidos que sim, mesmo num contexto de taxas de juro reais negativas, por aquilo que é a natureza do fenómeno inflacionista. Continua a ser originário nos bens energéticos. Nós vamos ter, pela primeira vez na história dos dados que temos registos de inflação, quatro anos em que o índice de preços dos bens energéticos na área do euro sobe acima de 5%. Isto é uma transição de preços. Não estamos a falar de um aumento do preço e depois uma correção.

 

Portanto, já não é uma tendência? 

É uma transição que sabíamos que tinha de acontecer. [Mas] não se espera que as taxas de juro na Europa atinjam os níveis que já atingiram nos EUA.

 

Parece que ainda ninguém sentiu a dor de ter de ajustar o seu rendimento e o seu consumo.

Nós gostaríamos que a inflação já tivesse começado a cair. A razão principal na Europa pela qual isto não aconteceu são fatores que estão de facto fora do controlo do BCE: a guerra, a sua extensão, a crise energética.

 

A política orçamental tem estado alinhada com a política monetária? 

Acho que neste momento não temos razão de queixa da política orçamental na Europa, ao contrário daquilo que aconteceu nos EUA. Subscrevo todos os aumentos de taxa que até este momento foram feitos pelo BCE.

 

Portanto não está entre os dois terços dos governadores defendiam um aumento mais agressivo? 

Eu não sei se é dois terços, mas a minha posição é, até colegialmente, totalmente alinhada com a decisão que foi tomada.

 

E até quando é que vamos ter este ciclo? 

Haver mais subidas é uma inevitabilidade e a previsibilidade da política monetária, que é altamente desejável, acontecerá de forma mais óbvia para todos assim que a inflação começar a cair.

 

Até 2025? 

Não. Vai começar a cair muito mais cedo. Se tivermos de esperar até 2025 para sairmos dos 10%, nesse momento, já não sei de que sistema económico é que estaria a falar. 

 

A questão é chegar a 2%.

Mas atingir os 2% a partir do momento em que a inflação começa a cair – senão houver mais choques –, posso quase garantir-lhe que, com as expectativas ancoradas, é uma questão de tempo.

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Vê o ministro das Finanças a repetir o brilharete que o governador Mário Centeno, enquanto ministro, alcançou? 

O objetivo, neste momento, da política orçamental, em que estamos em pleno emprego, é atingir níveis de equilíbrio que a tornem sustentável. Porque se quando nós voltamos a ter níveis de crescimento nunca vistos, anulamos todos os desvios face ao produto potencial criados com a crise da covid, quando temos a taxa de desemprego claramente abaixo da nossa taxa estrutural de desemprego, se, neste momento único – que aliás era o ponto em que estávamos em 2019 –, não voltássemos a níveis de equilíbrio nas contas públicas e não tivéssemos uma redução muito efetiva da dívida seria muito difícil projetar a sustentabilidade das contas públicas.

 

Há uma obrigação do atual ministro das Finanças de fazer esse brilharete? 

É um objetivo quase que inegociável de uma política orçamental sustentável. 

 

E não o surpreende que este ano o défice fique em 1,5%? 

Num evento do Negócios, projetei para 2022 – ainda estávamos em 2021– um valor que me vou abster de falar dele agora [abaixo de 1%, foi o valor indicado na conferência Banca do Futuro de 2021]. Não estava muito longe.

 

E antecipou também um valor para a divida que considerava ser aquele que devia ser seguido [116% em 2023]. Estamos nesse caminho? 

Estamos nesse caminho. Eu acho que é preciso estarmos convencidos de que esse caminho é que temos de seguir e estamos nesse caminho.

 

O que é que considera ser um patamar razoável? 

No boletim económico prevemos que, em 2025, a dívida esteja próxima dos 95% do PIB. Este número é um objetivo também, mas é só uma previsão. É o caminho.

 

Mas o que é que é alcançável verdadeiramente? 

Acho que este número é alcançável. Este número não tem um exercício orçamental por detrás. Nós fazemo-lo sempre numa definição que não é fácil de seguir, mas é a definição que usamos, de políticas constantes. Portanto, não é bem o atrito que nos levará a 95% da dívida no PIB em 2025. É preciso uma política orçamental que o sustente, mas é um número que é atingível. E tem uma virtude adicional – que já é mais relativa –, que é o de nos distanciar de um conjunto de países que, na Europa, neste momento, têm muito mais dificuldade em reduzir o peso da dívida no PIB. Estou a falar de França, Espanha, Bélgica, já não falamos de Itália, da Grécia... Já nos movemos num outro campeonato.

 

Conseguiríamos ter ido mais longe? 

Essa é uma discussão difícil, porque é uma discussão de escolhas e políticas públicas. Podíamos sempre ir mais longe. Eu aprendi, ou pelo menos formatei a minha forma de ver estas questões, desde que fui presidente do Eurogrupo, no seguinte sentido: devemos sempre ter a direção certa nas nossas políticas e o avanço que fazemos numa determinada direção é, na maior parte das vezes, menos relevante. Neste caso concreto, este objetivo de ter a dívida pública abaixo de 100% em 2025 – que é o que resulta das nossas projeções – é compatível com a presença da política orçamental naquilo que ela deve fazer num momento de pleno emprego. É preciso que nos capacitemos que nunca houve tanto emprego em Portugal, que nunca foram pagos tantos salários, que o rendimento disponível real das famílias conseguiu superar as dificuldades de 2020 e deste processo inflacionista em que estamos a viver. Há seguramente margens da população portuguesa na sua distribuição de rendimento que merecem a nossa atenção, mas Portugal nunca teve este conjunto de fatores: tão pouco desemprego, tanto emprego e tantos salários pagos. Isto é o que se chama pleno emprego.

 

Para si não é plausível que no próximo ano ou nos próximos dois anos haja uma degradação do emprego? 

A questão que nos deve verdadeiramente preocupar, e onde eu tenho colocado ênfase menos otimista nas minhas intervenções e na análise que fazemos, é no investimento e no mercado de trabalho. O investimento porque o seu ciclo está mais contido do que aquilo que seria desejável. Eu consigo arranjar explicações: a quebra da confiança a nível europeu; o facto de Portugal não ter tido uma deterioração do investimento muito grande em 2020, o que significa que não tem um ciclo tão pronunciado como outros países tiveram. Mas é preocupante que o investimento esteja a crescer em 2022 abaixo de 1%. É muito preocupante. E a questão do mercado de trabalho pela surpresa positiva que foi e nós devemos quase que, sendo assim um pouco coloquial, acarinhar esta evolução. Como é que isso é feito? Não colocando demasiada pressão sobre o mercado de trabalho, pressão legislativa, pressão sobre os custos, para que as empresas consigam manter este nível de emprego e para que os portugueses possam passar por esta fase com os níveis de massa salarial que hoje é distribuída. 

 

E que sinais é preciso dar ao setor privado? 

Previsibilidade, estabilidade fiscal, estabilidade financeira e, eu costumo juntar aqui também, estabilidade legislativa, para que não estejamos sempre numa vontade...

 

O que é que quer dizer com estabilidade legislativa? 

É previsibilidade. É previsibilidade das relações laborais, da legislação laboral. 

 

Mas não há nada de novo neste momento...

Ótimo (risos). O meu objetivo é só criar as condições para que... Porque é uma fase muito difícil de assumir, note.

 

A semana de quatro dias pode criar disrupção na discussão laboral?

Pode. Eu já em 2020 era da opinião de que quando estamos quase que numa experiência social devemo-nos abster de fazer experiências políticas. Porque o que nós queríamos naquela altura era retomar os níveis de atividade que tínhamos antes da crise. Nós neste momento vivemos mais um processo de transição que nos é imposto e que nós aceitamos, penso eu, socialmente de bom grado e que tem a ver com a transição energética, com a transição digital, com a transição educativa que em Portugal é talvez o fator mais importante de crescimento no médio prazo. Nós começámos essa transição no início do século e os números são absolutamente extraordinários, eloquentes e únicos na Europa. 40% dos jovens que entravam no mercado de trabalho apenas no ano 2000 tinham, pelo menos, o ensino secundário. Hoje esse número é 85%. Ou seja, vamos levar mais 20 anos, provavelmente, até que todo o mercado esteja nestas condições, que são os standards europeus de qualificações, que, temos de assumir, Portugal não tinha no século XXI. Não estou a falar de meados da década de 80 ou 90, estou a falar do século XXI. E isso é o que permitirá que os nossos salários continuem a crescer, que as empresas criem emprego para esta ofertas e trabalho e para estas qualificações. É muito importante, mais uma vez, não criar demasiadas ansiedades nestas transições porque elas são demoradas, criam perplexidades e esta conversa de os nossos jovens irem trabalhar lá para fora, são crises quase que às vezes de identidade. É quase como a banca: Portugal não estava habituado a ter uma banca capitalizada... Nós não estávamos habituados a olhar para nós como um país qualificado, como um país em que os jovens iam para a universidade. Não fazia parte do nosso ADN. E tanto não fazia que alterámos estas condições, mas não estávamos habituados. É quase estranho. A verdade é que, desde 2017, o fluxo migratório português é positivo: nós recebemos mais pessoas do que aquelas que saem. E este processo alimenta o processo de crescimento da população portuguesa. E as empresas vêm para Portugal, as empresas que estão em Portugal criam emprego para estas pessoas. Isto nunca deixou de acontecer em nenhum país que conseguiu este saldo qualitativo nas suas qualificações

 

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